Ao que se sabe, a mídia brasileira não faz como o extinto The News of The World, jornal britânico que grampeava políticos, celebridades e pessoas comuns para obter informações. A descoberta da ilegalidade gerou um escândalo inédito que resultou na prisão de jornalistas, no fechamento do jornal, na reação dos poderes e na discussão de uma nova regulamentação para os meios impressos. No caso brasileiro, os grampos divulgados são operados pela Polícia Federal e determinados pelo juiz Sergio Moro. Isso nos faz crer que as operações se deram todas dentro da legalidade, afinal seus executores têm prerrogativas jurídicas para fazê-lo. Mais ou menos. As circunstâncias determinam o alcance e os limites disso.
O fatídico grampo
Interceptações telefônicas são recursos bastante usados em investigações. A Constituição Federal garante liberdades individuais, inclusive os sigilos telefônico, postal, fiscal e bancário, que podem ser quebrados por ordens judiciais. É o que temos assistido. Um juiz determina que pessoas tenham seus telefones monitorados e suas conversas gravadas. Mas o caso do diálogo entre Dilma Rousseff e Lula é polêmico não apenas pelo teor, mas pela forma como foi obtido e divulgado.
A cronologia dos episódios mostra que a ligação telefônica foi gravada às 13h32min. Mais de duas horas depois que o próprio juiz havia determinado a suspensão das interceptações. O despacho de Moro com essa ordem é das 11h13min, e às 11h44min, a Polícia Federal foi notificada da decisão. Às 12h20min, a Justiça Federal do Paraná oficiou as companhias telefônicas comunicando o fim do grampo. A PF mandou e-mail à operadora Claro às 12h46min00, mais de uma hora depois de saber da decisão de Moro! Mesmo ciente de que não poderia haver novas interceptações, a PF informou ao juiz da conversa às 15h37min35. Às 16h21min57, Moro pôs fim ao sigilo da investigação, permitindo então sua ampla divulgação.
A cadeia dos acontecimentos mostra uma série de problemas que podem macular a “prova” e, em caso extremo, resultar na sua nulidade. Porque esses problemas esbarram na legalidade. Se a gravação foi feita depois do despacho de Moro, ela não está coberta por ordem judicial, não tendo validade jurídica. Foi ilegal. Pela praxe, o que foi encontrado – com teor comprometedor ou não – deveria ser descartado. Argumentam alguns juristas que, por se tratar de fala da presidente, deveria ser remetido ao Supremo Tribunal Federal. Em ambos os casos, o juiz Moro não teria competência para tratar desse detalhe. Só o STF pode investigar presidentes da República. E Moro sequer poderia abrir o sigilo da escuta ou vazar seus conteúdos. Assim como é questionável que tenha grampeado 25 advogados do escritório contratado por Lula, o que gerou uma gritaria no meio jurídico por violar a privacidade de relações entre advogados e clientes. Mas a publicização do controverso diálogo interessa particularmente quando se aborda a responsabilidade da mídia no processo.
Se a Globo “não produz grampos nem conduz investigação”, a emissora decide se e como divulgar conteúdos de interceptações e etapas do processo. Moro determinou o fim do sigilo da gravação e os telejornais da emissora decidiram divulgar o seu conteúdo, mas editaram a gravação, descartando importante trecho anterior ao diálogo entre Dilma e Lula. Enquanto o áudio completo, publicado pelo UOL dura 1min34, o do Jornal Nacional e dos principais telejornais da Globo e GloboNews mostra menos de 30 segundos. Alguém da redação pode argumentar que se tratou de uma edição necessária, para destacar o que realmente interessa: a suposta fala comprometedora. Entretanto, o descarte do trecho inicial permite que se ignore um detalhe fundamental: quem foi grampeada foi Dilma e não Lula!
Ao ouvir o trecho integral, percebe-se que a gravação captou o sinal e a fala de onde se origina a chamada, no caso a secretaria da Presidência da República. E o que parece um detalhe, converte-se em algo bem maior. Se a presidente não é investigada pela Operação Lava-Jato e se nenhum presidente da República pode ser investigado a não ser pelo STF, por que Dilma foi grampeada?
A edição do áudio disseminada pela Globo e outras emissoras levou ao público uma conversa estranha, que até pode ser considerada suspeita dentro do contexto das investigações. Mas ao omitir que a monitorada era a presidente e não o ex-presidente estaria a mídia cumprindo com seu dever?
Mídia golpista
Não é segredo pra ninguém que a TV Globo é frequentemente cobrada por seu histórico de adesão ao regime militar. Há poucos anos, a empresa não só tornou públicos suas diretrizes editoriais como também reconheceu ter sido um erro o apoio ao Golpe de 1964 e os governos dele derivados. A emissora também admitiu seu equívoco ao editar o famoso debate presidencial entre Lula e Collor, de 1989, em que apresentou ao público uma versão resumida bem favorável ao candidato Caçador de Marajás.
Esse histórico pesa como uma praga que não desgruda da empresa. É a ele que muitos recorrem quando criticam a cobertura jornalística da emissora. A justificativa dos telejornais é frágil. A edição do noticiário é feita por jornalistas, atendendo a critérios que deveriam ser meramente jornalísticos, mas não são, sabemos. Há subjetivismos e outros contaminantes que podem interferir de maneira determinante nas decisões. A cúpula editorial da emissora poderia ter resolvido não trazer à tona a gravação ilegal. Poderia argumentar que ela foi obtida em momento não amparado por ordem judicial. Possivelmente, seria cobrada pelos que querem ver os cadáveres políticos de Dilma e Lula, seria tachada de manipuladora… Era um risco ser acusada de estar ocultando a história, de estar manipulando a informação. Optou-se por divulgar, e toda ação tem suas consequências. Então, qualquer que fosse a decisão dos editores, haveria cobranças. A responsabilidade de divulgar é de quem torna público um conteúdo. No caso em questão, o juiz Moro e a mídia foram agentes e não afetados.
O direito é claro: ser responsável é responder por algo. Então, o juiz federal sabia (ou deveria saber) o que estava fazendo quando não apenas decidiu levar em consideração a gravação extemporânea como decidiu derrubar o sigilo que pairava sobre o áudio. Os jornalistas sabiam (ou deveriam saber) o que estavam fazendo quando resolveram espalhar a gravação, mesmo observando que ela era posterior ao despacho de Moro. E alguns decidiram exibi-la incompleta. A partir do momento em que a redação decide colocar no ar, jogar nas ruas, um conteúdo, a responsabilidade não é apenas de quem produziu a informação, mas também de quem a difundiu.
Foi o que vimos há pouco nos Estados Unidos. O site Gawker acaba de ser condenado a pagar US$ 115 milhões ao lutador profissional Hulk Hogan por divulgar um vídeo íntimo não-autorizado. A gravação mostra Hulk fazendo sexo com a mulher do melhor amigo, e o vídeo não foi feito pelo site, mas tão somente tornado público por ele. A justiça norte-americana considerou que o site tem responsabilidade sobre o conteúdo que publica. Isto é: não publicar é uma decisão possível. O curioso é que a decisão do júri dos EUA se deu apenas três dias após a divulgação do fatídico grampo de Dilma.
Nesta semana, diversos meios de comunicação divulgaram escutas entre familiares de Lula e numa delas sua esposa, Marisa Letícia, irritada com manifestações, pede para que esses guardem suas panelas em outro lugar. As conversas pessoais, privadas e sem qualquer importância para as investigações em curso, foram tornadas públicas pela Gazeta do Povo, Veja e pelo site O Antagonista, entre outros, e o conteúdo foi distribuído pela Agência O Globo. Deve-se publicar tudo o que chega às redações? Tudo é relevante para a audiência?
No cravo e na ferradura
Não é consensual a interpretação da conversa entre Lula e Dilma. Há quem veja uma trama para obstruir a justiça e há quem não considere nada comprometedor. Se houvesse elementos mais nítidos, possivelmente não renderia tanta discussão em meios políticos, jornalísticos e jurídicos. O teor é polêmico, a sua gravação e divulgação não. Essas foram ilegais, pois não seguiram os ritos da lei.
Passado o frenesi da divulgação da polêmica conversa, alguns setores da media mainstreamcomeçaram a se preocupar com possíveis excessos de Moro. Foi assim com a Folha de S.Paulo, que publicou editorial na sexta-feira, 18 de março, alertando para o que chamou de “protagonismo perigoso” de certos atores do Judiciário. Observadores distintos e igualmente respeitados como Jânio de Freitas e Elio Gaspari, no mesmo jornal, chamaram a atenção para a necessidade do fortalecimento das instituições e os perigos de se cair no canto das sereias da fama e da adoração pública. Na revista Época, Leandro Loyola lembrou que o juiz passou de herói a incendiário em poucos dias. O alerta foi soado para além das fronteiras nacionais, como se pode ver em artigo de Eliane Brum para The Guardian, e na ampla reportagem de Glenn Greenwald, Andrew Fishman e David Miranda para The Intercept. No português Público, a professora Sylvia Moretzsohn expandiu a lente para além do foco em Moro, captando também movimentos do ministro do STF Gilmar Mendes.
Os gritos dos manifestantes contrários ao impeachment e as queixas de vozes influentes chamam a atenção para a parcialidade da cobertura jornalística e para a falta de isenção da justiça, duas feridas com que regimes democráticos não podem conviver. É evidente que o jornalismo precisa fiscalizar os poderes. Mas insisto no plural, o que inclui o Judiciário, sempre tão temido (ou poupado). É evidente que o Judiciário tem que fazer seu papel e punir a quem tiver cometido crimes. Mas é admissível um processo que seja embasado em provas irregulares ou ilícitas? Ou que esse mesmo processo seja conduzido por quem se mostra parcial?
A soma de cobertura parcial, de pré-julgamento nas redações, de excessos do juiz Moro, de declarações que demonstram parcialidade (como do juiz Catta Preta e de Gilmar Mendes) e o acirramento da polarização política criam um ambiente inflamável. Os contrários ao impeachment bradam que há um golpe jurídico-midiático em curso. Os favoráveis taxam seus adversários de cúmplices da corrupção. É um choque de narrativas e muitos sentidos estão em disputa. O jornalismo joga um papel muito importante nesse embate.
Dias contados?
Além dos gritos contrários, diversos manifestantes chegaram a empunhar cartazes pedindo o fim da TV Globo. Militantes avaliaram que Dilma Rousseff estaria pagando um alto preço político por não democratizar a mídia. O jogo é maior e ele tem regras. A emissora do Rio e todas as demais que dependem de outorgas públicas devem satisfações à sociedade justamente por contarem com essa condição: operam porque detêm concessões públicas.
A Constituição é clara neste sentido: seus conteúdos devem ser preferencialmente informativos, educativos e culturais, e essas emissoras devem contrapartidas sociais aos brasileiros. As concessões para rádios duram dez anos e as de TV, quinze. Podem ser renovadas e até mesmo cassadas, mas o rito depende de aprovação do Parlamento. Cassar a concessão da TV Globo sem passar por isso é também um golpe, não se pode esquecer.
Alguém pode lembrar que monopólios e oligopólios na radiodifusão são proibidos pela Constituição e que o Grupo Globo passa por cima dessa regra, usando diversas estratégias. É verdade, e ele não é o único, o que faz com que sete ou oito famílias dominem o setor neste país continental. Mas não se pode admitir uma ilegalidade para combater outra! Trocando em miúdos: se há monopólios e oligopólios na radiodifusão e eles são ilegais, devem ser usadas as leis e a política para corrigir os vícios. Notem que ainda carecemos de uma lei que determine como se deve quebrar a concentração de mídia no país e tal ausência cria brechas perigosíssimas. Quem pode formular e aprovar essas leis são deputados e senadores, muitos deles diretores e até proprietários de meios de comunicação, condição igualmente proibida pela Constituição! O imbróglio é tamanho que mal sabemos por onde começar…
Apenas cassar a concessão da Globo não resolve. Se os contrários ao impeachment clamam por democracia e respeito à lei, eles devem também respeitar as regras vigentes. Podem se organizar em movimentos pela democratização da mídia, podem pressionar seus representantes para fazer reformas nas leis, podem cobrar os governos, podem acionar a justiça com denúncias de parlamentares que descumprem a Constituição, podem exigir que a programação das emissoras atendam aos preceitos constitucionais…
Lula e Dilma tiveram mais de uma década para liderar um debate nacional sobre a democratização dos meios de comunicação. Ignoraram os movimentos sociais, e a estrutura organizacional da mídia no país permanece a mesma de antes da redemocratização.
O que fica, então?
Como estamos no meio da tempestade, medir seus estragos e antever seu fim são tarefas para os profetas. Pessoalmente, não sei como sairemos disso. Mas como já disse, o jornalismo tem um papel importantíssimo no jogo da crise: pode apontar caminhos para as investigações, deve morder os calcanhares dos poderosos, desviar de vaidosos e pretensos heróis, e oferecer um conjunto de elementos que permitam o julgamento e o discernimento das audiências.
O nome do jogo é credibilidade.
Jornalistas têm o dever de apurar se Lula, Dilma e tantos outros cometeram crimes. Têm o dever de investigar se os esquemas de corrupção se limitam aos governos petistas. Precisam manter uma faísca de dúvida diante de dossiês que chegam às redações, de vazamentos seletivos, de delações premiadas, de depoimentos das mais diferentes partes. Jornalistas não julgam. E mesmo quem deve julgar, deve fazê-lo de forma serena e equilibrada, sem paixões ou cores partidárias.
A concorrência jornalística, a busca pelo furo, o tiroteio de versões, as contrainformações, tudo isso desnorteia repórteres e editores. Mas 2016 não é 1964 nem 1992, embora associações possam ser feitas com a vinda dos militares e o impeachment de Collor. Só teremos uma compreensão melhor do que está acontecendo se houver um jornalismo que não antecipe cenários provisórios. É preciso que repórteres investiguem com rigor e que as notícias sejam divulgadas com equilíbrio, senso e serenidade. A pressa, o descaso, a incompletude minam a credibilidade dos relatos, precarizam eticamente a narrativa.
No afã de produzir manchetes e oferecer cadáveres políticos, o Correio Braziliense acusou em 1991 o então ministro da Saúde Alceni Guerra de comprar 23 mil bicicletas a preços superfaturados. Descobriu-se depois que a operação foi regular, mas já era tarde. Alceni ficou com fama de corrupto e perdeu o cargo. Dois anos depois, Veja envolveu o presidente da Câmara Federal, Ibsen Pinheiro, no chamado escândalo dos Anões do Orçamento. Na capa, a revista perguntava: “Até tu, Ibsen?”. Erros de apuração da reportagem ajudaram a produzir um massacre político e midiático que resultou na cassação do político em 1994. Outros exemplos poderiam ser citados aqui…
O jornalismo precisa fugir das compreensões de senso comum e se desviar das dicotomias fáceis. Tratar alguns como vilões e outros como heróis não é apenas irreal, é desonesto. Esses personagens só existem na ficção. Fazer acreditar que o crime e a corrupção começaram neste ou naquele governo é amnésia histórica e parcialidade de contextos. Confiar cegamente em investigadores, delegados, juízes, delatores, autoridades políticas e seus assessores é de uma atitude primária em termos de técnicas jornalísticas. Acreditar que quanto pior o cenário, melhor o noticiário político é investir no caos. E ele vai corroer tudo: primeiro os governantes de plantão, depois seus sucessores e na sequência, as instituições, a nossa esperança no país, o tecido social e a democracia. Quando não sobrar nada disso, como irá sobreviver o jornalismo? E a quem iremos responsabilizar?
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*Professor da UFSC e pesquisador do objETHOS