Em evento organizado pelo Instituto Millenium, em São Paulo, diretores e representantes dos principais veículos de comunicação do país criticaram mais uma vez os mecanismos de democracia participativa e defenderam a auto-regulação para o setor de mídia no Brasil. “No estágio atual, é melhor deixar tudo como está. O mercado tem conseguido resolver isso. Conferências são nada mais que a instrumentalização de um projeto político ideológico que tem como alvo minar a liberdade de imprensa e o capitalismo”, afirmou Denis Rosenfield, articulista do Estadão.
Depois de sete horas de discurso sobre o que seriam os principais riscos para a democracia e a liberdade de expressão no Brasil de hoje, foram apresentadas as conclusões do evento promovido pelo Instituto Millenium na última segunda-feira (1). Entre elas, afirmações categóricas de uma linha de pensamento que a imprensa brasileira já não tem mais vergonha de defender:
– o setor de comunicação no país não precisa de mais leis, e sim de auto-regulação
– as Conferências Nacionais representam a estatização da opinião de minorias e são promovidas por entidades da sociedade civil cujo teor é decisivamente determinado por interesses partidários, governamentais ou ambos
– é urgente fazer um debate forte contra o Programa Nacional de Direitos Humanos para impedir que ele seja implementado
Tamanho espírito democrático foi propagado por figuras como Denis Rosenfield e Alberto Di Franco, articulistas do jornal O Estado de S.Paulo; Roberto Civita e Sidnei Basile, do Grupo Abril; Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja e William Waack, editor da Rede Globo, todos palestrantes convidados do 1o Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, apoiado por entidades como a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), ANER (Associação Nacional de Editores de Revista), ANJ (Associação Nacional de Jornais) e Abap (Associação Brasileira de Agências de Publicidade) e realizado num hotel de luxo esta semana em São Paulo.
Alvo favorito da grande imprensa desde o final de 2009, a terceira edição do Programa Nacional de Direito Humanos foi duramente atacada durante o seminário como um “ambicioso plano de implantação de um regime autoritário no Brasil”.
“O Plano (sic) agride gravemente o direito de propriedade e sugere o controle dos meios de comunicação. Será um autoritarismo cuidando da história de outro autoritarismo. E o Brasil autoritário e intolerante que o governo quer construir é sustentado nesses dois pilares: o exercício da democracia direta e o controle dos meios de comunicação”, acredita Di Franco. “Você lê que o governo se dá ao direito de criar uma classificação dos programas de acordo com os direitos humanos e que o invasor de terras passa a decidir junto com o juiz se vai sair dali ou não e deixa barato? Será que ninguém tinha lido isso?”, esbravejou Reinaldo Azevedo, que fez questão de assumir a paternidade das “denúncias” contra o PNDH-3 para além da polêmica da criação da Comissão da Verdade, que já ocupava as páginas dos jornais.
Para os convidados e membros do Instituto Millenium, o PNDH-3, documento construído num processo amplo de participação popular, que envolveu mais de 14 mil pessoas em todo o país – “organizações de fachada”, segundo William Waack -, é uma clara escalada da intervenção do Estado na vida da população. Num texto publicado na página da organização no internet, intitulado “Panfleto contra o PNDH-3”, afirma-se que “os verdadeiros direitos humanos são garantir a propriedade privada e as liberdades individuais básicas”.
Tanta fúria contra o Programa surge de pouquíssimas de suas mais de 500 propostas de ação, como a que propõe um “projeto de lei para tornar obrigatória a presença no local, do juiz ou do representante do Ministério Público, à ocasião do cumprimento de mandado de manutenção ou reintegração de posse de terras, quando houver pluralidade de réus, para prevenir conflitos violentos no campo”; a que sugere “elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações” – algo implementado há vários anos pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados – e “garantir a possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os meios de comunicação e a penalizar, na forma da lei, as empresas de telecomunicação que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos”.
Em síntese, criar mecanismos para que os meios de comunicação cumpram o que já prevê a Constituição brasileira, que segue periodicamente ignorada por grande parte das emissoras de rádio e TV, concessionárias públicas. Para seguir nesta toada e convencer a opinião pública de que sua teoria está correta, a estratégia das grandes empresas de comunicação é travestir tais iniciativas de violadoras da liberdade de expressão.
“Vivemos um debate democrático no Brasil e o PT, por intermédio da liberdade de imprensa, propõe subverter a democracia pelos processos democráticos”, afirma Denis Rosenfield.”A tendência é de implementação do PNDH-3, mas isso depende de como a sociedade vai reagir. Houve reação dos militares e da Igreja, e os dois setores foram contemplados. Então não há muito convencimento do governo em relação ao plano. Mas as entidades empresariais estão contemporizando. Se fizerem isso, serão as vítimas”, sentencia.
A dificuldade fica maior quando vozes do próprio Partido dos Trabalhadores embarcam neste discurso. “Vira e mexe aparece uma vontade no governo de controlar a mídia. O Brasil tem caminhado num sistema democrático, embora apareça fatos como o PNDH (…) Não vejo necessidade de uma ação governamental pra ver se o jornal tal está respeitando os Direitos Humanos”, disse o deputado federal Antonio Palocci, também presente ao evento do Instituto Millenium.
O “autoritarismo” da participação popular
Como pano de fundo da crítica ao Programa Nacional de Direitos Humanos 3 está a aversão das grandes empresas de comunicação a quaisquer mecanismos de participação popular na definição das políticas públicas no país. As conferências nacionais, realizadas há décadas no país e potencializadas nas últimas gestões do governo federal, seriam controladas, como apontou a conclusão do Fórum do Instituto Millenium, por interesses partidários e governamentais.
“Em termos éticos, 90% dessas organizações são totalitárias e querem impor um modelo e padrão da vida pública”, afirmou Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp, fonte favorita da grande imprensa quando se trata de criticar a esquerda. Não se concebe compreendê-las como espaços abertos e plurais, onde qualquer cidadão e cidadã pode manifestar sua opinião. Nem mesmo os mecanismos de democracia direta previstos no artigo 14 da Constituição Federal – que a grande mídia afirma defender – são respeitados. Para Carlos Alberto Di Franco, do Estadão, por exemplo, plebiscitos e referendos devem ser vistos como “formas excepcionalíssimas de consulta”.
Para Denis Rosenfield, as conferências são “meios de participação política de movimentos sociais e sindicatos que têm objetivos específicos contra os meios de comunicação, apresentando isso de forma palatável como o controle social e a defesa dos direitos humanos, quando o alvo evidente é cercear a liberdade de expressão”.
No bojo das críticas à democracia participativa, tais grupos econômicos desqualificaram, mais uma vez, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), da qual as mesmas entidades que organizaram o evento em São Paulo se recusaram a participar. “As entidades empresariais colocaram premissas para sua participação, já que a pauta da Confecom era revisão do marco regulatório e o controle social. Nós dissemos que não poderia ficar de fora a liberdade de expressão, a livre iniciativa, o combate à pirataria. Insistimos para que isso viesse à pauta e isso não sobreviveu à agenda das demais entidades que lá estavam”, tentou explicar Sidnei Basile, do Grupo Abril, ignorando que todos esses temas foram de fato debatidos na Confecom. “Então nos retiramos. Foi bom, foi correto marcar nossos princípios. E o conto do vigário que estava sendo vendido não vigorou”, afirmou o jornalista, que minutos antes taxou de cínica e hipócrita tal iniciativa do governo.
Um dos temas mais criticados pela grande imprensa nos debates da Confecom foi justamente o controle social da mídia, que voltou ao centro do alvo no Fórum do Instituto Millenium. Os dardos vieram de todos os lados.
“Estranho que, justamente quando vivemos uma democracia plena, se esteja falando em maior controle dos meios de comunicação. Mais estranho ainda é falar isso quando mais de 60 milhões de brasileiros já têm acesso à internet, onde o fluxo de idéias e opiniões é totalmente livre e felizmente impossível de censurar e controlar”, avaliou Roberto Civita, para quem, talvez, baste o fluxo de idéias e opiniões na rede mundial de computadores.
“Não pode haver controles além da própria constituição de um país (…) Não se pode fazer lei a torto e a direito. E a Constituição de 88, no que diz respeito a concessões, publicidade e meios de comunicação, é muito explicita. E o que se vê hoje são tentativas de cada vez mais frequentes de se inibir a publicidade ou a notícia. (…) Tem muita gente querendo uma nova lei de imprensa. Da vontade de dizer: “faz”. Não existe boa lei de imprensa em nenhum lugar”, sentenciou o deputado federal pelo PDT Miro Teixeira, ex-Ministro das Comunicações.
Já o atual ministro, num rompante de seu espírito democrático, deixou claro: “em hipótese alguma o governo aceitaria uma discussão sobre o controle social da mídia. Não será permitido discutir isso do ponto de vista governamental; é algo que consideramos absolutamente intocável”, afirmou Hélio Costa, para quem a Confecom – que, diga-se de passagem, aprovou resolução em defesa do controle social e da participação popular nos meios de comunicação – não determina o que o governo deve fazer, levantando apenas sugestões “que não necessariamente devem ser colocadas em prática”.
A lei do mercado
O recado, em suma, é o seguinte: nada de povo e nada de lei nas comunicações brasileiras. “Quanto menos legislação melhor”, disse Civita. “No estágio atual, é melhor deixar tudo como está. O mercado tem conseguido resolver isso”, garante Rosenfield. Para não parecer que o que se defendia ali era a lei da selva, Sidnei Basile, do Grupo Abril, sacou da cartola a palavra mágica: auto-regulação. “O que se pode fazer conosco só nós é que podemos definir (…) Faço o convite para uma cultura da auto-regulação e da prevalência da boa fé”, disse. Alguém consegue acreditar? Di Franco emendou: “Não é o Estado que tem que ser o tutor da sociedade. O mercado e a auto-regulação fazem isso extremamente bem”.
“Vejam a última resolução da Anvisa, que diz que os medicamentos não podem ficar ao alcance do consumidor. Agora o Estado deve dizer tudo o que devemos fazer e como nos comportar? Liberdade de consumo, cinto de segurança, etc. Somos idiotas? O capitalismo também se caracteriza pela liberdade de escolha em todos os seus sentidos”, teorizou Denis Rosenfield.
Com a auto-regulação concordaram até Hélio Costa e o deputado federal Antonio Palocci: “Os códigos de conduta das empresas, que educam sua equipe e organizam o trabalho da maneira adequada para tratar temas sensíveis, têm funcionado de forma eficiente. Não será o Estado que dirá como fazer”, disse o petista.
Mas nem esta linha redutora do dever do Estado em promover a pluralidade, a diversidade e a participação popular e combater as violações de direitos humanos nos meios de comunicação foi suficiente para que os pensadores do Instituto Millenium abrissem mão da tese de que a liberdade de expressão está mesmo ameaçada no Brasil por iniciativas do governo federal e o autoritarismo dos movimentos sociais.
“Os grandes grupos empresariais estão satisfeitos com este governo. Se preocupam apenas com seus interesses materiais imediatos e se esquecem do espírito do capitalismo: a afirmação da liberdade de escolha e de expressão. Será que não estão colocando a corda no pescoço a médio e longo prazo?”, questionou Rosenfield. Quem dera…
Fonte: Bia Barbosa (Carta Maior)