Guilherme Boulos*
O velho provérbio aconselha entregar os anéis para preservar os dedos: em situações adversas, certas concessões seriam necessárias para garantir o essencial. Os provérbios são passíveis de uso, mas também de abuso.
A narrativa dos dedos e anéis serviu para o governo Dilma tentar justificar a ruptura com seu programa e a adoção de uma agenda antipopular. Foi assim com a composição ministerial, com o ajuste fiscal, as Medidas Provisórias do seguro-desemprego e das pensões e com as reiteradas concessões à pauta conservadora no Congresso.
Em 2015, foram-se os anéis.
Mas essas concessões, diziam, eram necessárias para manter os dedos: a seguridade social do Estado brasileiro, a política de reajuste do salário mínimo, os programas sociais e a soberania sobre o pré-sal.
Dilma não teve qualquer cerimônia em enterrar esta narrativa nos primeiros dois meses de 2016. Os dedos tiveram, um a um, sua entrega anunciada. Em alguns casos, efetivada à vista.
A apresentação da reforma da Previdência ao Congresso deu início ao novo momento. As propostas de uma idade mínima para aposentadoria, de equiparação entre homens e mulheres e do desmonte da aposentadoria rural fizeram o governo cruzar a linha vermelha das contrarreformas estruturais.
E, uma vez ultrapassada a linha, encorajou-se em avançar mais. Nelson Barbosa, em nome da presidente, anunciou um projeto de reforma fiscal a ser enviado ao Congresso até o fim deste mês. Em poucas palavras, trata-se de transformar o ajuste fiscal em política de Estado, regulamentando ataques medonhos às políticas sociais e aos servidores.
A proposta é estabelecer medidas compulsórias caso as despesas extrapolem o previsto ao longo do ano. Seriam três gatilhos: no primeiro, haveria suspensão do aumento real dos servidores, dentre outras medidas. No segundo, seria suspenso o aumento nominal (isto é, redução salarial) e a ampliação de subsídios, afetando os programas sociais. E no terceiro, enfim, haveria congelamento do salário mínimo.
Para não restar dúvida, na semana passada dois projetos coroaram este leilão de dedos do governo Dilma. O primeiro era esperado e já tramitava há algum tempo por iniciativa do governo –e com pedido de urgência: a lei antiterrorismo. Aprovada pela Câmara, a lei abre brecha para a criminalização de movimentos populares através de sua tipificação como “terroristas”.
Por mais que a versão final seja menos agressiva do que a do Senado, ainda permite margem para uma interpretação criminalizadora de delegados, promotores ou juízes. Mais um retrocesso institucional encampado pelo governo.
Completando a série, o dedo mais emblemático: a exploração do pré-sal. José Serra pôde enfim cumprir sua promessa à Chevron de descaracterizar o regime de partilha. Não imaginava, talvez, é que o conseguiria em acordo com o governo Dilma.
Com a avaliação de que poderia perder a votação, o governo tornou-se cúmplice do projeto derrubou a Petrobrás como operadora única, além da obrigatoriedade de participação mínima de 30% nos campos do pré-sal. Caiu antes da queda.
Aposentadoria, programas sociais, salário mínimo, direito de manifestação e pré-sal. nada mais parece ser ponto inegociável para este governo. Ou melhor, o único ponto inegociável é atender rigorosamente à sanha do mercado financeiro em desmontar a proteção social e ampliar seus ganhos.
Em nome de uma suposta governabilidade, Dilma está destruindo seu governo e criando para si um legado de retrocessos. E, mesmo com tudo isso, não tem nenhuma garantia de que chegará até 2018.
Como já disse aqui André Singer, se era para enfrentar o risco de cair, que fosse então pelos bons motivos.
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*Guilherme Boulos é filósofo e coordenador do Movimento dos Trabalhadores sem Teto.
Publicado originalmente na Folha de São Paulo