0,00 BRL

Nenhum produto no carrinho.

Folha, ombudsman, um jornal e suas escolhas

Sylvia Debossan Moretzsohn

Desde que anunciou, na segunda-feira passada (18/1), a contratação de um jovem líder de um movimento de direita como seu mais novo colunista, a Folha de S.Paulo foi alvo de uma avalanche de protestos nas mídias sociais, com inúmeras declarações de cancelamento de assinatura. A revolta foi assinalada aqui por Lívia Vieira, num artigo que apontava o que estava por trás de toda aquela agitação e mostrava que o jornal talvez não devesse comemorar o número de cliques recebidos por aquela notícia.

Por isso, poucas vezes a coluna da ombudsman foi tão aguardada. E poucas vezes foi tão decepcionante.

A forma pela qual Vera Guimarães Martins tratou o tema provocou nova onda de protestos na internet. Um dos mais contundentes partiu do jornalista e crítico de cinema José Geraldo Couto, que trabalhou por mais de vinte anos no jornal: “A Folha devia abolir de vez a coluna do(a) ombudsman, ou trocar seu título para ‘autodefesa’ e passar a ser escrita diretamente pelo diretor de redação. Do jeito que está, é uma ofensa a um cargo que já foi nobre em outros jornais e, ocasionalmente, até mesmo no da Barão de Limeira”.

A professora Marcia Benetti, da UFRGS, lembrou que a própria Folha define, em seu discurso institucional, o posto de ombudsman como “o representante dos leitores dentro de um jornal”. Mas a atual ocupante do cargo começa a coluna debochando de um leitor – “crente que estava fazendo uma provocação” – e o ataca – pelo “raciocínio autorreferente”. Passa o resto do texto “defendendo o jornal com unhas e dentes, firmemente convencida de que todos os leitores que reclamaram estão errados e são intolerantes – porque sempre tem reclamação, sabe? esta é apenas mais uma, os leitores veem o jornal como um Fla-Flu, ou seja, os leitores são idiotas”.

O propósito de desqualificar as críticas, de fato, começou pela tentativa de minimizar a reação do público: Vera informava que havia recebido “quase uma centena de mensagens de condenação”. Se foi apenas isso, não haveria motivo para dedicar todo o espaço da coluna a esse tema. Uma notinha bastaria.

O problema é que não foi, porque os protestos obviamente não se resumiram às manifestações formais à ombudsman: espalharam-se pelo mundo virtual. Como todo jornal acompanha o que se passa nas mídias sociais, não seria difícil dimensionar o tamanho do estrago.

A tentativa de desqualificação prosseguia com as referências a adversativas. “Parte do leitorado elogiava o pluralismo de opiniões, mas… Seguiam-se argumentos respeitáveis, mas…”. Como se as ressalvas fossem simplesmente retóricas e estivessem ali como um canhestro disfarce para uma índole, no fundo, autoritária: pois, “ao fim e ao cabo, o resultado era a intolerância ao colunista e suas ideias”.

Os cães e a caravana

Convencida de que o problema era simples assim, Vera associou o que considerou “gritas de agora e d’antanho” e apelou ao sofisma: acenou com os protestos desencadeados, então, à direita, quando da contratação de Guilherme Boulos, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, em 2014. Inclusive porque, “vejam só”, Boulos havia utilizado o seu espaço, naquela semana, “para fazer críticas ao novo colega”.

Num comentário no Facebook, a jornalista Claudia Antunes apontou o absurdo do paralelismo: “Considerar o Boulos um radical de esquerda é ignorar, por exemplo, que tanto o direito à moradia quanto a função social da propriedade estão na Constituição brasileira”.

Vejam só. Aparentemente, a ombudsman ignora esse detalhe, de modo que repetiu o falacioso recurso de nivelar todo mundo: a esquerda critica a direita, a direita critica a esquerda, como os cães que ladram inutilmente diante da caravana que segue, impávida.

Vera lembrou que o novo colunista vai escrever “só no site”, como se o site fosse menos importante que o jornal. Classificou o jovem como “uma promessa” e chamou de “abusadas” as mensagens que ele manda. A “piada infame” sobre a semelhança entre as feministas e o miojo, essa grosseria abominavelmente machista, seria, portanto, apenas isso: uma mensagem “abusada”, coisa de garoto inconsequente. A ombudsman, aliás, pareceu sinceramente contrariada por ver que ele, “inteligente como é”, ao ser entrevistado pela TV Folha – uma entrevista de 35 minutos –, não se arrependeu da tal piada, publicada há dois anos, quando ainda era menor de idade.

ggshsfdghhdfgvdfdfgvbdfbfxc
Postagem machista de Kim Kataguiri, publicada em seu perfil do Twitter em 02/07/2014

Ao final do artigo, numa nota à parte, a ombudsman voltaria à carga contra os leitores, “à direita e à esquerda”, que “gostam de demonizar a ‘mídia monopolizada’, aquela que supostamente só publica o lado que lhe convém, e louvar a internet, pela liberdade e diversidade de vozes que ela abriga”.

Questão de substância

Realmente, um raciocínio binário e simplório seria incapaz de alcançar o sentido da crítica mais profunda. Não se trata de questionar a contratação de alguém tão jovem, na flor dos seus 19 anos, embora a prudência recomende ir devagar com esse andor, pois mesmo aos jovens mais brilhantes – o que, seguramente, não é o caso – lhes falta aquilo que só a experiência pode proporcionar. Sobretudo quando vão ocupar um espaço para tratar de política – e, no caso, misturam-se a ambição pessoal ao discurso agressivo, ofensivo, discriminatório, mistificador e repetidor de estereótipos, como é comum no ambiente de confronto raso que prolifera na internet.

A questão não é de ideologia, mas de substância. Um jornal, como todos deveríamos saber, é um relevo na geleia geral do cotidiano. Sua importância deveria crescer ainda mais nesses tempos de algaravia virtual, onde qualquer um, aparentemente, pode dizer o que bem entende. Um jornal sempre foi e precisaria continuar a ser uma referência de informação e opinião qualificadas. Todo jornal tem sua linha editorial mas, com certeza, deve zelar pelo pluralismo. Porém, precisa elevar o debate, não degradá-lo. Acolher colaboradores sem estofo é oferecer a sua marca para legitimá-los – e degradar-se. Ao tentar identificar-se com o que é “popular” na rede, deixa de ser um relevo e cava sua própria sepultura.

mhjmbhjkbhjmbh,jkhb
Charge de Vitor Teixeira, publicada em sua página no Facebook em 21/01/2016

Esta é uma discussão de fundo, que deveria preocupar a ombudsman: afinal, um jornal faz suas escolhas. Ao acolher certos colaboradores, escolhe também o público que quer preservar e, consequentemente, o que pode dispensar. Mas, afinal, um jornal também escolhe quem ocupará o cargo de ombudsman: no caso, parecem feitos um para o outro.

Guinada à direita

O alvoroço provocado por essa situação levou Claudia Antunes a lembrar o que ocorreu nos Estados Unidos, “onde a entrada dos radialistas ultraconservadores, da Fox e do pessoal do Tea Party, deslocou para a direita o eixo do debate público. Aqui esse deslocamento começou com Reinaldo Azevedo e companhia”. Ainda assim, por lá, “um jornal mainstream com o New York Times não caiu nessa de mimetizar a polarização da internet”.

O jornalista Carlos Tautz acha importante averiguar o que está por trás desse processo, que se generaliza entre os jornais brasileiros. “Pode ser o posicionamento estratégico agressivo diante da eleição e reeleição de governos do PT, o que talvez eles considerem uma inflexão de classe nos moldes e na profundidade do que foi o governo Jango; a marcha batida no sentido de deixarem de fazer produtos informativos e se concentrarem em produtos de entretenimento, que são muito mais rentáveis – esse parece ser especificamente o caso do Grupo Globo, pelo menos. A única coisa da qual eu cá comigo tenho certeza é de que eles fazem de caso pensado. Não é apenas uma reação à crise, competição com internet etc. Mas é um fenômeno que carece de uma pesquisa consequente”.

Criando corvos

A justificativa que o editor executivo do jornal, Sérgio Dávila, deu para a contratação contestada – e que a ombudsman, aparentemente, não considerou relevante reproduzir – é significativa:

“Ao definir o seu time de colunistas, a Folha procura representar o vigor, a diversidade e a amplitude do espectro de opiniões na sociedade brasileira contemporânea. Kim Kataguiri é um dos expoentes de um movimento combativo, jovem e emergente, adepto de ideias liberais e crítico da esquerda. Fazia sentido, em nosso entendimento, agregá-lo ao nosso quadro de mais de uma centena de opinionistas dos mais variados matizes, ideológicos e temáticos”.

“Opinionistas”, como se fossem palpiteiros.

Não, não é inocente assim.

Esse rapaz não é um “expoente de um movimento combativo, jovem e emergente”. É simplesmente um expoente do analfabetismo político, nada além disso. Quando lhe oferece palanque, um jornal tradicional como a Folha ajuda a alimentar esse analfabetismo. São decisões editoriais, em ano eleitoral e em pleno desenrolar do processo de impeachment da presidente da República, abertamente defendido pelo novo colunista.

A Folha se notabilizou nos anos 80 como o “jornal das Diretas”, abraçando a campanha pelo restabelecimento do voto popular para presidente. Mas também foi o jornal que, no auge da ditadura, cedeu suas caminhonetes de transporte de carga à Operação Bandeirantes, para a perseguição, captura e condução de militantes de esquerda para a tortura no DOI-Codi. E, na sua atual guinada à direita, é o jornal da “ditabranda” e da não explicada publicação da ficha falsa de Dilma Rousseff na época de sua prisão.

Deve saber o que está fazendo quando cria corvos.

[divider style=”solid” top=”20″ bottom=”20″]

Professora de jornalismo na UFF e pesquisadora do objETHOS

Matérias semelhantes

Comentários

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Mais lidas