Na madrugada do dia 31 de agosto o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra realizou mais uma ocupação em Santa Catarina. Impedidas de seguir pela estrada principal que dá acesso à terra já desapropriada pelo Incra para a Reforma Agrária no Município de Taió, no Alto Vale do Itajaí, abrindo caminho na escuridão, 38 famílias seguiram pela mata fechada por volta das 4h30min da manhã. O solo barrento e a subida íngreme não foram obstáculos. Crianças, adultos e idosos seguiram morro acima. No amanhecer, via-se alguns sapatos que ficaram para trás enterrados no lodo.
A terra já lhes era de direito, mas a ganância e o poder do capital os impediam de chegar a ela. A estrada que dá acesso à terra foi privatizada e pertence hoje a empresa de papel e celulose HCR. No entanto, esta gente de luta nunca desiste. O sonho de ter um pedaço de terra para viver e criar seus filhos com dignidade é maior.
Quando tudo começou
Um decreto assinado pela Presidência da República, em 22 de janeiro de 2008, declara de interesse social para fins de Reforma Agrária o imóvel rural denominado “Fazenda HCR”, também conhecida como “Fazenda Mato Queimado”. A fazenda, de 930 hectares, faz parte de um conjunto de empresas de papel e celulose da Hendrich S. A. Mesmo com o Decreto do governo e a presença do Incra, a empresa impediu as famílias de passarem pela estrada principal que dava acesso à fazenda. Além disso, após a publicação do decreto desapropriando a área, a empresa de celulose plantou pinus no local, que, como todos sabem prejudicam o solo, para tentar mostrar uma função social para a terra e assim reverter à situação. Felizmente o governo manteve a desapropriação.
As primeiras tentativas de entrar na terra ocorreram no final de janeiro e início de fevereiro de 2008. Na época, o acesso à fazenda foi fechado e os materiais e equipamentos dos sem-terra apreendidos. Os trabalhadores então ficaram no centro comunitário da cidade e tiveram a água e a luz cortadas. No dia 6 de maio de 2009 a história se repetiu. Novamente as famílias foram impedidas de entrar na terra, sendo cercadas pelos capangas da empresa e hostilizadas. Assim, o MST levou as famílias para o assentamento “25 de maio”, em Santa Terezinha, município vizinho de Taió. Finalmente, na madrugada do dia 31 de agosto, seis meses depois de o governo desapropriar a terra, as famílias abriram junto a picada no meio da mata, porque a empresa e fazendeiros locais insistem em proibir o acesso pela estrada principal. Dessa forma, as famílias conseguiram chegar à terra tão esperada, onde cerca de 50 famílias vão fincar raízes no chão.
As caras do movimento
Ivonete Mota Vieira França, 27 anos, trabalhava na colheita de tomate em uma fazenda no município de Caçador para sustentar os dois filhos, um de dez e outro de sete anos. “Não tínhamos o que comer e não dava para sustentar os filhos com o dinheiro que ganhávamos na colheita de tomate. A colheita ia de meados de dezembro até fevereiro. Depois ficávamos sem trabalho. Eu adoro a vida no capo. Me criei no interior, mas ficar trabalhando ganhando um salário de fome não dava mais. Foi ai que tomei a decisão de lutar por um pedaço de terra que fosse meu e entrei para o MST, afinal pobre tem que lutar sempre”, conta Ivonete, que estava no acampamento do MST em Campo Erê. Como o MST não conseguiu a desapropriação da terra almejada no município, a família de Ivonete e mais algumas famílias vieram para Taió, onde a terra já era garantida.
Pedro Corrêa, 49 anos, também estava no acampamento em Campo Erê. “Lá não conseguimos a posse da terra, então algumas famílias vieram para Taió. Ficamos um ano acampados, mas não conseguimos negociar. Eu trabalhava como diarista em fazendas da região. Meu sonho sempre foi ter um pedaço de terra para plantar”, diz Pedro, emocionado com a conquista da terra em Taió e por lembrar os dias sofridos e de represália dos capangas da empresa que os impediam de ter acesso à fazenda.
Neri Arcari, 52 anos, é assentado em Santa Terezinha, local que acolheu as famílias no dia 6 de maio. Mesmo com seu pedaço de terra já conquistado na luta, ele veio ajudar na ocupação. “Hoje meu filho mais velho, que nasceu no assentamento Santa Terezinha, já está na faculdade de Tecnólogo em Agronomia. A conquista da terra em Santa Terezinha em 1986 abriu as portas para a Reforma Agrária no Estado. Aprendemos muito com a luta na época e hoje ajudamos outras famílias a buscar o direito de viver bem, plantar e criar seus filhos de forma digna em terras que antes eram improdutivas”, diz Neri.
João Maria de Oliveira, está há nove anos no movimento e hoje se encontra no assentamento do MST no município de Correia Pinto. “Desde 2006, saiu a posse da terra e agora estamos construindo as casas. São 1.314 hectares. Foi uma etapa vencida na minha vida. Um sonho realizado”, desabafa João.
Vilson Santin, uma das mais expressivas lideranças do MST em Santa Catarina, lembra que a área ocupada em Taió já foi palco de muitas lutas na região e da Guerra do Contestado. Ele diz que muita gente já morreu ali pela luta por liberdade e terra. Emocionado, como todos que ajudaram na ocupação em Taió, Santin conta que o acampamento deverá se chamar Miguel Forte da Silva, em homenagem a um companheiro do MST de Chapecó morto recentemente em um acidente de carro. “O MST tem uma história que se iniciou em 1984 e tem reconhecimento dentro e fora do País”, lembra Santin. Filho de pequenos agricultores, ele conta que iniciou na luta por terra em 1979. Ele lembra que muitos padres da Igreja Católica, militantes da Teologia da Libertação, incentivaram esta luta, em trabalhos realizados nas Comunidades Eclesiais de Base, idéias que ele levou consigo.
“Dentro do sistema capitalista em que vivemos, onde a burguesia não quer abrir mão de seus privilégios, não e possível realizarmos a Reforma Agrária que gostaríamos. Há muitas terras improdutivas no País, mas a preferência do mercado é entregá-las à especulação do capital privado estrangeiro, que são um bando de canalhas e sanguessugas. O capital não se importa em preservar o meio ambiente, só visa o lucro, enquanto nós, do MST, queremos terras para o plantio da agricultura familiar, respeitando o meio ambiente e dando mais qualidade de vida às famílias. Queremos cultivar a terra. Mas o governo não enfrenta a elite para realizar a Reforma Agrária necessária. E a sociedade tende a criminalizar nosso movimento sem conhecê-lo por dentro, acreditando nas mentiras da mídia”, avalia Santin. “No governo Lula não avançamos tudo o que gostaríamos. Nossa luta por uma Reforma Agrária de caráter popular, pela transformação da sociedade e pela união dos trabalhadores do campo e da cidade por um mundo melhor, vai continuar”, completa.
“Todo dia é dia de luta”
Geneci Luciana Fátima Andrioli, 31 anos, é uma das lideranças estaduais do MST e vive no assentamento em Correia Pinto. Ela também veio ajudar na ocupação em Taió. Ser mulher, mãe, cuidar da casa e da família e ainda atuar no movimento são desafios que Geneci enfrenta todos os dias. “Todo dia é dia de luta”, diz animada. “Ocuparmos a terra foi um grande passo, mas agora temos que lutar contra o coronelismo que impera na região. A prioridade é buscar junto às autoridades locais a abertura de uma nova estrada que dê acesso ao acampamento. Porque por enquanto o único acesso é pela mata e a empresa HCR e os fazendeiros continuam impedindo nossa passagem. Não podemos colocar em risco a vida das famílias, tentando passar pela estrada principal. Depois, o próximo passo será realizar, com orientação do Incra e participação das famílias que aqui ocuparam a terra, o PDA (Programa de Desenvolvimento do Assentamento). O PDA vai nos orientar sobre a forma de plantio, onde poderemos futuramente construir casas, dividir a terra e assentar as famílias, de forma que, hoje, o que são barracas de lona amanhã se tornem moradias com direito a água, luz, saneamento básico, enfim, com o direito a uma vida digna”, diz Geneci. “O assentamento em Taió será construído dia a dia. Teremos que cortar os pinus e preparar o solo para o plantio dos alimentos das famílias. A esperança que hoje brota no coração destas famílias, aos poucos, será transformada em sementes e no alimento que virá da terra conquistada”, vislumbra Geneci.
Por Marcela Cornelli, jornalista do Sindprevs/sc e da revista Pobres & Nojentas
Leia mais sobre a luta do MST na edição da revista Pobres & Nojentas de setembro/outubro que em breve estará circulando.