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A bruxa na fogueira do Estadão, uma imagem e seus símbolos

Sylvia Debossan Moretzsohn*

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Que nenhuma imagem vale por si nem pode ser interpretada fora de contexto é algo que deveria ser claro para todos os que têm alguma cultura a respeito de semiótica ou análise de discurso. Por isso causou surpresa o elogio da foto publicada em destaque na primeira página do jornal O Estado de S.Paulo de 4/5/2016: na contramão dos que se chocaram ao ver o rosto da presidente Dilma Rousseff capturado de um ângulo em que parecia estar sendo consumido pelo fogo da tocha olímpica acesa no Planalto, não foram poucos os que classificaram aquela cena como um grande momento do fotojornalismo, capaz de traduzir, numa única imagem, todo um momento histórico.

Não há dúvida de que muitas imagens se tornam simbólicas. Ficaram na memória coletiva, por exemplo, a imagem da menina nua fugindo em desespero do bombardeio de napalm numa aldeia vietnamita, da execução de um prisioneiro vietcongue numa rua de Saigon, do chinês solitário em frente aos tanques no massacre da Praça da Paz Celestial.

Não foi por acaso, portanto, que a polêmica em torno da primeira página do Estadão levou à lembrança de outras fotos marcantes da nossa história política. Desde uma das mais recentes, de 2011 – a de Dilma “atravessada” pela espada do militar em solenidade na Academia das Agulhas Negras –, até a do ex-presidente Janio Quadros com os pés trocados, a simbolizar a falta de rumo do governo, a do general Figueiredo querendo posar de civil mas traído pelo ângulo que lhe fazia assentar na cabeça o quepe do oficial que, atrás dele, batia continência na parada militar, ou a da menina que recusou cumprimentar esse mesmo general-presidente, representando a rejeição popular à ditadura.

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Os elogios à imagem de Dilma ardendo na fogueira diziam respeito à sua qualidade, ou valor, “do ponto de vista jornalístico”. “Foto boa tem de ser publicada, ponto final”, disse um ex-editor de fotografia, com o arremate imediato e absoluto tão característico dos profissionais do ramo. Valeria a pena pensar o que significa esse “ponto de vista jornalístico”, tão claramente autolegitimante, acenado como álibi supostamente indiscutível porque ancorado na “técnica”? Valeria a pena pensar, afinal, o que é uma “boa” foto?

Ao se contrapor a essas justificativas automáticas, a jornalista e pesquisadora Amanda Cotrim resumiu o que, desde pelo menos os ensaios de Barthes, no início da década de 1960, passou a ser incorporado pelos estudiosos da área, mas ainda está bem longe do senso comum: “a foto em si não é boa ou ruim, quem atribuirá sentidos a ela somos nós, sujeitos, por isso a fotografia é polissêmica”.

Deveria ser claro, também, que uma foto pode ser interpretada de várias maneiras, e que o sentido pretendido por quem a divulga é “fechado” pela edição – o que, entretanto, não anula outras interpretações por parte do público. No caso, a foto de Dilma na fogueira, visualmente, se relaciona diretamente à manchete (“Janot denuncia Lula na Lava Jato e pede investigação contra Dilma”), embora a cena diga respeito ao acendimento da tocha no Planalto, como informa a legenda, que não deixa de mencionar o impeachment, e cujo título, “Fogo olímpico”, tem notoriamente mais de um sentido.

9Mas mais importante ainda é considerar o contexto, indissociável de qualquer análise. Numa conjuntura em que as forças mais retrógradas prevalecem e aprovam o rito do impeachment não com argumentos mas em nome de Deus e da família, execram a diversidade de gênero e chegam ao cúmulo de exaltar torturadores, num momento em que decisões judiciais impedem professores de emitir opinião em sala de aula (como ocorreu em Alagoas) e tolhem a liberdade de expressão (como ocorreu na UFMG), num ambiente em que fascistas ameaçam nas ruas e nas redes quem pensa diferente, em suma, em meio à onda obscurantista que se espalha pelo do país, a imagem da presidente em chamas é mais do que o símbolo de um governo em extinção: é a expressão do desejo inquisitorial de queimar a bruxa na fogueira que o próprio jornal, em sua campanha sistemática pelo impeachment, ajudou a acender – um aspecto que, como sempre, a edição silencia.

Entre os muitos que deploraram a publicação da foto, o professor Reginaldo Nasser, que recentemente decidiu recusar entrevistas à grande imprensa, resolveu expressar seu protesto visualmente: respondeu ao jornal na mesma moeda e tocou fogo no seu exemplar. O jornalista Haroldo Ceravolo registrou, de maneira bem-humorada: “Reginaldo achou que uma imagem dizia mais que mil palavras”.

P.S.: Escrevi no calor da hora, num dia particularmente turbulento, que exigia a atenção constante de todos os que estamos preocupados com o desenrolar dos acontecimentos. Já pela manhã corria a inesperada notícia de que o ministro Teori Zavaski havia afastado liminarmente o deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara e o STF se reuniria à tarde para apreciar a decisão, que acabou confirmada por unanimidade. Mas, também de manhã, a suspensão arbitrária da sessão na Câmara provocou uma rebelião dos deputados contrários ao impeachment, transmitida ao vivo por um deles, e intensamente compartilhada no Facebook. Por isso, não foi possível pesquisar adequadamente para redigir o artigo, e pelo menos duas referências importantes ficaram de fora. Faço-as agora.

A primeira é a remissão às observações de Venício A. de Lima em artigo noObservatório da Imprensa de 9/9/2014 (ver a íntegra aqui), sobre o uso que oCorreio Braziliense fez de uma foto no desfile de 7 de setembro daquele ano: Dilma no palanque, com o canhão do tanque na direção de seu nariz.

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Venício aponta as graves consequências desse recurso que os jornalistas, sobretudo os que trabalham com imagem, costumam valorizar simplesmente como uma grande “sacada”, esperta e criativa – embora, de tão repetida, já se tenha tornado um óbvio clichê:

“Para além da partidarização inequívoca da grande mídia brasileira e diante de exemplos sucessivos, parece que ela não está sendo capaz de fazer uma distinção fundamental, sobretudo agora, em tempos de campanha eleitoral: a distinção entre o ritual dos cargos públicos, os símbolos nacionais, a institucionalidade da política, dos políticos, dos ocupantes dos mais elevados cargos públicos da democracia representativa brasileira; e sua opinião/posição (dela, grande mídia) em relação a esses eventuais ocupantes.

“As consequências dessa ‘não-distinção’ podem ser trágicas para a própria democracia. Ao se desrespeitar reiteradamente eventuais ocupantes de altos cargos públicos, inclusive em fotos com insinuações inconfessáveis, esse desrespeito é transferido para as instituições e a credibilidade da própria democracia. Como mostrou há décadas a professora Maria do Carmo Campello de Souza, ‘o teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações [dos meios de comunicação] acaba por estabelecer junto à sociedade (…) uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos’.

“No atual nível de partidarização da grande mídia brasileira, não há solução de curto prazo para que se desfaça esta confusão nefasta. A cobertura adversa e a desqualificação da política e dos políticos é sua pauta preferencial. Resta torcer para que a democracia representativa brasileira sobreviva a uma grande mídia que, apesar de se apresentar como sua principal defensora, corrói, cotidiana e reiteradamente, seus fundamentos mais caros”.

A segunda referência, particularmente oportuna diante da imagem da bruxa consumida pelo fogo na capa do Estadão, é à monografia que um dos mais brilhantes alunos de jornalismo da UFF, Hugo R.C. Souza, apresentou em 2004, como trabalho de conclusão de curso, e que trata dessa espécie de mito fundador da prática jornalística, romanticamente associada à missão de um sacerdote. Hugo demonstra que “o discurso jornalístico moralista-missionário, quando apropriado pelas empresas capitalistas de comunicação muito bem geridas e administradas com ‘profissionalismo’ e de acordo com a lógica neoliberal, tende inevitavelmente do sacerdócio ao Santo Ofício”.

“Do sacerdócio ao Santo Ofício” é o título da monografia, na verdade um belo ensaio, que já deveria ter sido publicado. Não só pela qualidade, mas por ser, tragicamente, mais atual do que nunca.

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Jornalista e professora da UFF, pesquisadora do objETHOS

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