Evandro de Assis*
“Acidente complexo na curva da Praça do Estudante. Muito movimento de bombeiros, que estão tendo de cortar as ferragens. Parece ser apenas um carro que avançou e capotou, mas pela quantidade de ambulâncias deve ter envolvido mais pessoas”
Era uma hora da madrugada quando o professor universitário e consultor Marco Alan Rotta publicou o texto acima no Facebook acompanhado de quatro fotografias. As imagens mostravam ambulâncias, bombeiros e curiosos em torno dos destroços de um carro que capotara 20 minutos antes. Rotta saberia no decorrer daquela sexta-feira, 13 de maio, que o acidente seria o principal assunto do dia em Blumenau, cidade catarinense de 330 mil habitantes.
A violência no trânsito mata mais de 40 mil pessoas por ano no Brasil, mas apesar da carnificina já banalizada, em cidades pequenas e médias mortes causadas por acidentes continuam sendo notícia. Quando os passageiros do carro acidentado são jovens de 19 anos e o cenário é uma área central e conhecida da cidade, apinhada de universitários divertindo-se em bares e baladas, o caso em si transcende a tragédia familiar para despertar discussão de relevância social. Natural, portanto, que o acidente chamasse a atenção da imprensa.
As informações começaram a circular cedo nas rádios que mantêm programas jornalísticos. Pelo boletim diário da Guarda Municipal de Trânsito soube-se que a batida na Praça do Estudante matara uma garota, Larissa de Pin Laux. Outro ocupante do carro, Victor Hugo Fusinato Pereira fora levado ao hospital em estado delicado. Duas jovens escaparam sem ferimentos graves. O VW Jetta havia batido num poste e numa árvore antes de capotar e parar num barranco.
Entre 8h e 8h30min, cinco websites locais publicaram a notícia, dentre eles o do Jornal de Santa Catarina, que mantém a maior equipe de jornalistas da cidade, e a Rádio Nereu Ramos AM, única emissora com programação majoritariamente jornalística e local. Usavam imagens fornecidas pelo Corpo de Bombeiros e se limitavam a fornecer as informações oficiais. Às 9h55min o site do jornal atualizou a notícia, incluindo uma fotografia de Larissa e informações do seu perfil no Facebook. Os telejornais locais abordaram o tema ao meio-dia, sem grandes avanços na apuração. Ao longo do dia as conversas nas ruas desconectaram-se daquilo que a imprensa podia oferecer ao público.
Os blumenauenses só tiveram informações atualizadas via imprensa às 21h11min, quando o Jornal de Santa Catarina trouxe um breve perfil da vítima baseado em informações de uma professora e de uma amiga. Mesmo material publicado na versão impressa do dia seguinte, com fotografia do veículo retorcido destacada na capa.
Os textos sobre o assunto tratavam as causas do acidente como mistério, lacuna que os leitores trataram de preencher com interpretações das mais variadas e imprecisas nas caixas de comentários dos sites e nas redes sociais. Havia outro veículo envolvido? Como o carro se perdeu na curva? De onde os jovens vinham e para onde iam? Era possível observar algum indício de imprudência? A Guarda produziu laudo da batida? As imagens das câmeras da Polícia Militar registraram o que ocorreu? As sobreviventes podiam fornecer alguma pista?
Não houve resposta para nenhuma destas questões até o fechamento deste texto, uma semana depois. O que ensaiava ser um relevante debate social sobre a combinação perigosa entre juventude e trânsito na comunidade de Blumenau transformou-se em bate-boca improdutivo nas redes sociais que expôs vítimas e familiares.
Vácuo informativo
Dentre os efeitos colaterais do processo de transformação estrutural do jornalismo ao modelo “pós-industrial” descrito por Anderson, Bell e Shirky (2013), o vácuo informativo que começam a viver comunidades locais brasileiras é um dos mais devastadores. A exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, país em que a imprensa regional e local é parte constituinte do ambiente democrático, cidades pequenas e médias do Brasil enfrentam o risco cada vez mais real de não ter uma redação jornalística atuante para cobrir temas cotidianos, mediar conversas, fiscalizar os poderosos e denunciar injustiças.
Jornais, rádios e TVs locais enfrentam o derretimento das receitas com publicidade (drama estrutural agravado pela recessão econômica nacional) e têm menor margem para cortar custos sem reduzir seu jornalismo. Do outro lado, no mundo digital veículos locais reúnem audiências de baixa escala, com baixo potencial de monetização, via publicidade ou cobrança pelo conteúdo. Na prática, as empresas diminuem drasticamente de tamanho afetando qualidade e abrangência da cobertura jornalística – quando não fecham as portas. É iminente a possibilidade de cidades médias importantes não contarem com o trabalho regular de um jornal diário – ou de redação com ao menos uma dúzia de jornalistas para observar e discutir o cotidiano.
No momento em que “crise” virou lugar comum no Brasil, e que a observação e crítica do jornalismo debruça-se sobre temas nacionais urgentes, a imprensa local declina silenciosamente e o vácuo de informação que fica nem de longe é compensado pelas ainda incipientes iniciativas nativas digitais.
Poucas fontes, muitas dúvidas
O exemplo do acidente em Blumenau fornece pistas do impacto para os leitores, o principal deles a gritante dependência das fontes oficiais. Numa rotina em que têm tarefas demais e tempo de menos para executá-las, jornalistas satisfazem-se com o que recebem de autoridades (como a Guarda de Trânsito), restringem a apuração ao caminho mais fácil e rápido (publicações em redes sociais) e abandonam a pauta tão logo uma demanda nova surge. No episódio específico, a imprensa esqueceu o acidente já no sábado, quando espalhou-se boato de que o garoto hospitalizado também havia morrido – Victor faleceria na quarta-feira, dia 18, dia em que o assunto voltou à pauta momentaneamente.
Incerteza, hipóteses infundadas, conversas desorientadas e boatos tomam o lugar da informação verificada por jornalistas profissionais. No caso que ilustra a argumentação deste post, perdeu-se oportunidade de discutir tema de alta relevância social. O vácuo que não se consegue enxergar à primeira vista, entretanto, tende a ser ainda mais nocivo: há cada vez menos jornalistas para fiscalizar o trabalho das mais de 5 mil prefeituras e câmaras de vereadores brasileiras, acompanhar processos e julgamentos das comarcas locais, observar as atividades das forças de segurança, apontar bons e maus exemplos de atuação empresarial; isso sem falar do engajamento comunitário, dos vínculos culturais e afetivos.
A dependência de assessorias de imprensa e fontes com traquejo para saber usar o vácuo informativo a seu favor enfraquece um serviço essencial, de interesse público.
Colaboração
Se o blumenauense Marco Alan Rotta tivesse acesso ao boletim da Guarda de Trânsito, reuniria material jornalístico tão ou mais rico do que os jornalistas profissionais puderam fazer. Ele publicou antes, percebeu a gravidade do fato e produziu fotografias em geral melhores que as dos bombeiros, usadas pela imprensa. Nenhum jornalista o procurou para servir de fonte.
Imaginemos por um instante que ao menos outras cinco testemunhas do acidente em Blumenau pudessem relatar o que viram. E se, diferente do que houve no exemplo citado, os jornalistas tivessem contato direto com as cinco fontes em potencial e recolhessem pontos de vista para além do boletim dos guardas de trânsito.
É por isso que o jornalista Carlos Castilho (2016) defende a proximidade de veículos digitais com o que chama de “comunidades de informantes”, uma estratégia para tornar o conteúdo mais autêntico e conectado à realidade das pessoas. Nos Estados Unidos, há pelo menos 10 anos jornais locais recorrem a parcerias com seus leitores para produzir jornalismo mais autêntico ainda que cortem custos nas redações. Alguns, como o nativo digital The Rapidian, da cidade de Grand Rapids, Michigan, têm programas específicos de treinamento de leitores-repórteres e permitem até mesmo a publicação direta, sem edição.
Há um jornalismo novo a ser construído para se reverter o crescimento do vácuo informativo em âmbito local. Provavelmente mais complexo, imerso em mais e maiores dilemas éticos e, pelo menos até agora, sem garantia de viabilidade econômica. Se os jornalistas não se ocuparem dele, alguém o fará.
Referências:
ANDERSON, Chris., BELL, Emily., SHIRKY, Clay. 2013. Jornalismo pós-industrial: adaptação aos novos tempos. Revista de Jornalismo ESPM. n. 5, p. 30-89, Jun. 2013
CASTILHO, Carlos. O jornalismo online depende das comunidades de informantes. Observatório da Imprensa. Mar. 2016. Disponível em: <http://goo.gl/gySGWb
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Mestrando em Jornalismo no POSJOR e pesquisador do objETHOS