A chuva caindo e dentro do Auditório José de Assis Filho, no Sintufsc, em Florianópolis, falava-se de África. O jornalista Osíris Duarte, que viajou a Dakar, no Senegal, para o Fórum Social Mundial, promoveu uma espécie de prestação de contas, já que só conseguiu atravessar o oceano com a ajuda de vários sindicatos de trabalhadores de Florianópolis. Queria dividir o que conheceu e aprendeu. Não foi surpresa ver que dirigentes de sindicatos promotores da viagem não apareceram, e é sempre muito frustrante observar que a própria esquerda se recusa a conhecer e compreender com profundidade a dramática situação africana. Por outro lado, a presença de um expressivo grupo de estudantes africanos tornou a conversa um debate rico e profundo, como há muito tempo não se via na universidade.
Osíris começou o seu relato falando sobre o Fórum Social que, este ano, reuniu bem menos gente do que os anteriores. Para se ter uma idéia, no acampamento da juventude, que já chegou a juntar milhares de pessoas, havia vaga para apenas 300. “Tampouco era como foi no Brasil, centenas de barracas coloridas e muita confusão. Não. Eram aquelas enormes barracas que se vê em campos de refugiados, o que deu um toque bem diferente ao acampamento”. Segundo Osíris, a troca de reitor na universidade de Dakar, três dias antes do evento, acabou inviabilizando o uso de vários espaços no lugar e o Fórum virou um caos. “Eu então decidi que não ia ficar confinado nos debates, mas fazer um mergulho na vida local”. Para Osíris a experiência no Senegal mostrou um país pobre, mas com uma gente cheia de vontade de estudar e crescer. “Na universidade são mais de 40 mil alunos, e eles vivem em condições muito precárias nas moradias estudantis, que abrigam até sete mil estudantes. Seis ou sete pessoas nos quartos de quatro metros quadrados. Mas há uma fome de saber, uma vontade de ser alguém na vida, que nos deixa até emocionados”.
No Senegal quase 90% da população é de muçulmanos e a economia gira em torno da agricultura, da pesca artesanal e do artesanato. Também há extração do fosfato. Naquele país a cor é o símbolo da beleza. A tecelagem é rica em colorido e representações simbólicas. Impossível ficar imune. Lá, fala-se o francês porque o país foi durante muito tempo uma colônia da França. Outra peculiaridade é que o país abriga dentro dele um outro país, a Gâmbia, coisa bastante incomum.
Ainda no Senegal Osíris visitou a Ilha de Goreé, hoje famosa por ter sido o lugar de onde saíram mais de 25 milhões de homens, mulheres e crianças, seqüestrados de sua terra para serem vendidos como escravos na América. “É um lugar triste de se ver. O símbolo máximo da exploração humana”.
Depois de terminado o Fórum o jornalista seguiu para o Cabo Verde, um conjunto de dez ilhas com fortes características portuguesas. “Lá a gente pode perceber que há uma organização melhor, a população tem mais serviços públicos. Percebi que há muitos chineses nas ilhas, eles parecem tomar conta de quase tudo. O Brasil é muito presente e a Rede Record é televisão mais assistida. Fiquei impressionado”. A nota triste ficou por conta da Ilha do Sol, um lugar cheio de beleza, mas que está tomado pelo turismo europeu. Lá, a prostituição acaba sendo um dos poucos recursos que as jovens locais têm para garantir o sustento.
O terceiro país a ser visitado foi Guiné-Bissau, o que mais o surpreendeu pela pobreza e pela grandeza do povo. “Eles ainda estão se recuperando de guerras civis, mas mostram uma força, uma capacidade de superação que é de arrepiar”. Segundo Osíris, a Guiné Bissau padece de grandes problemas. A maioria da população não tem água, não tem luz e muito pouca alimentação. O estado parece inexistente e quem acaba proporcionando um mínimo de condições são os organismos internacionais que abundam no país. “Isso também me deixou bem desconfiado. Entidades como o FMI, a FAO, a Unesco e outras estão ali há anos, ocupam prédios enormes e bonitos, mas parecem fazer muito pouco pela gente de Bissau”. O jornalista conta que ficou na casa de uma família bem típica do lugar e pode acompanhar de perto o dia-a-dia do povo real. “É uma vida dura, mas a gente percebe que eles são famintos de beleza, de sabedoria. O rapaz em cuja casa eu fiquei é um garoto humilde, de vida precária, mas fala cinco línguas estrangeiras e cinco dialetos africanos. É uma gente culta, educada, alegre e cheia de fibra. Dói na alma vê-los tão abandonados e entregues a situações de completa falta de oportunidade”.
Depois da apresentação foi a vez dos estudantes africanos falarem. Ali estavam representantes do Cabo Verde, da Guiné Bissau e Angola. O primeiro a falar foi Joel Aló Fernandes, que se disse surpreendido pelo relato. “A gente sempre vê o pessoal falar muito mal da África, mas tu mostraste respeito com a nossa história e a nossa cultura. Estou agradavelmente surpreso”. Em seguida, o debate que se seguiu versou sobre as possibilidades dos países daquela região da África, os desafios que enfrentam na tentativa de superar a miséria que é decorrente de toda a exploração colonial, mas também da ganância de uma elite africana predadora. “Nossos males também vem de dentro. A corrupção é muito grande. Não há transparência no governo, não se sabe os termos dos contratos que eles têm com as empresas européias e sabe-se que os governantes têm muito dinheiro no exterior”. Por outro lado, a África é um continente que tem muito potencial e pode aprender com as experiências que vem dando certo.
Outro tema que esquentou o debate foi a Líbia. Osíris contou que em Bissau havia uma preocupação muito grande com o que acontecia lá porque historicamente o presidente líbio, Muammar Kadafi, sempre ajudou o país e consolidou a idéia de uma unidade africana. Por outro lado, as informações de que ele mantenha gordas contas no exterior geram desconfiança. “A gente tem sempre de desconfiar quando a mídia conta só um lado da história, ou quando reproduz a exaustão o que pretende seja a verdade sobre as coisas. A mídia mente muito, vejam o caso do Iraque, por isso pude perceber certa simpatia pelo presidente líbio”. Um dos estudantes, de Moçambique, também falou sobre a cruzada estadunidense para levar “paz” ao mundo. “Se perguntássemos a um iraquiano hoje se ele preferia o que tem agora ou o tempo do Saddam, eu duvido que a resposta não seja: o tempo do Saddam. Os Estados Unidos não levaram democracia. Levaram morte, guerra, sangue, dor. E agora, lá na Líbia, a gente vê os rebeldes felizes, mas o que virá depois da guerra, será bom?”
Para os africanos que enriqueceram o relato da viagem, o que falta aos países daquele continente é definir claramente o modelo de desenvolvimento que querem para a África. Uma vez definido isso, as coisas podem avançar. Sobre a fuga de cérebros, levantada por uma estudante brasileira, eles disseram que mesmo fora de seus países eles estão cotidianamente conectados e ajudando a transformar. Alguns africanos que saem da África para estudar até não retornam, mas, longe, atuam sempre no sentido de fomentar o processo de transformação. “Às vezes a gente não volta porque sabe que lá não teremos oportunidade. Mas nosso coração e nossa mente estão na África. Tudo que podemos fazer para mudar aquela realidade, fazemos. Lá ou em qualquer lugar do mundo”.
Artigo também publicado no blog Pobres e Nojentas
Autor:Elaine Tavares – jornalista