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Os métodos jornalísticos, a ética, a intimidação e o autoritarismo

Por Francisco José Castilhos Karam
Professor na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS

A luta milenar entre mostrar e esconder é incessante. Se alguns tentam esconder e outros mostrar, temos claramente um conflito de interesses. Em sociedades complexas tais métodos se tornam ainda mais sofisticados, com a tentativa de obscurecer dados da realidade ou de revelar elementos dela. O critério de publicização passa a ser a relevância do desvendamento para a sociedade e em que isso pode contribuir para que se veja melhor.

Na Alemanha, a expressão método wallraffen chega a representar disciplinas em cursos de jornalismo sobre a forma de trabalho de Gunter Wallraff, autor, entre outros livros, de Cabeça de Turco, Fábrica de Mentiras e O jornalista indesejável, os dois primeiros traduzidos no Brasil. Cabeça de turco chegou a vender muitos milhões de exemplares em todo o planeta, com tradução em vários países.

O método wallraffen inclui infiltração e alteração de identidade, coisa que nem Wallraff foi o primeiro a fazer e nem será o último. Tampouco essa conduta é exclusiva da área jornalística. Mas é paradigmático de um método que, mediante avaliação moral e técnica jornalística, legitima-se em decorrência de possíveis benefícios sociais.

Amparados pela regulamentação, policiais fazem isso há muito tempo, técnicos em inteligência também. Amparados pela Modernidade e pelo contrato social baseado em uma divisão de funções e trabalhos, jornalistas fazem isso desde a consolidação da reportagem como gênero central no jornalismo, afirmado no ambiente de uma sociedade republicana, democrática, industrial. E na qual a Instituição Imprensa passa a ter papel relevante na disseminação e compartilhamento de fatos, versões e debates contemporâneos, mediante alguns critérios como interesse público.

Ainda que a Imprensa seja crescentemente um negócio que inclui a informação apenas como um de seus produtos – e, a meu ver, o principal-, conceitos como credibilidade e legitimidade sociais foram e são importantes para que o jornalismo se mantenha como essencial à vitalidade democrática e aos debates e decisões gerados a partir dessa.

Recomendações e liberdade – Na maioria dos códigos de ética aplicada, deontológicos, de conduta de jornalistas profissionais em todo o planeta, em geral há uma recomendação de que deve se evitar métodos ilícitos ou duvidosos para obtenção de informação. Mas comumente há uma vírgula e, depois dela, uma célebre expressão “a não ser que os métodos tradicionais tenham sido utilizados sem sucesso e a informação a ser dada tenha relevância”. Foi assim que jornalistas ingressaram em determinados supermercados para conferir, após denúncia, como funcionários alteravam, durante a noite, a data de validade de determinados produtos perecíveis. Prestaram à sociedade um serviço diante do engodo e desserviço que as redes de supermercados estavam fazendo. Foi assim que jornalistas ingressaram em manicômios para mostrar, com texto e fotos, o tratamento desumano dado a pacientes internados. De outra forma, uma visita jornalística guiada e autorizada possivelmente encontraria o local com flores, tapete vermelho e um cenário montado e bem arrumado.

Em geral, logo após a publicização de matérias/reportagens com tais métodos, há uma divisão em duas perspectivas. De um lado, há os que bradam que faltou “ética” aos profissionais jornalistas, talvez menos pelo método e mais porque ficaram “nus” diante da sociedade quando tentavam bater a carteira dela. De outro, os que celebram o desvendamento de uma realidade que afeta número significativo de pessoas.

Assim, embora o mandato popular conferido ao jornalista não passe pelo sufrágio universal, há uma legitimidade em nome da posição de ofício que ele tem para mostrar dados e fatos que atinjam diretamente a vida dos cidadãos. E que bom se assim fosse sempre, acima dos interesses mercadológicos e econômicos que autorizam algumas investigações jornalísticas a seguir adiante e outras não, a partir dos centros de poder da empresa.

O método wallraffen está dentro do conceito de legitimidade, comparável ao trabalho dos detetives, embora jornalistas não tenham a mesma garantia constitucional e jurídica e, muitas vezes, física para tal exercício. No entanto, há uma garantia moral, dada pelo papel social que representa ou deve representar a profissão. Não para generalizar tal método, mas para utilizá-lo quando necessário e de acordo com as plenas convicções de que tal trabalho trará esclarecimento à sociedade que pode estar sendo enganada ou prejudicada com a ocultação. E também onde as instituições do Estado começam a falhar ou quando estão envolvidas elas mesmo em atos duvidosos. Ou, ainda, onde setores particulares se apropriam do interesse público para defender apenas o próprio bolso.

Métodos na profissão e no ensino – Tais métodos são discutidos na profissão (como nos congressos da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – Abraji – e no âmbito acadêmico), tanto eticamente como no exercício da prática que simula a profissão e tende, em uma boa escola, a se aproximar da realidade do trabalho. Em vários casos, trabalhos são feitos com algum risco. Se não fosse assim, seria melhor os jornalistas ou estudantes cobrirem apenas baile de debutantes ou inauguração de estátuas.
Felizmente não é assim, e jornalistas e estudantes correm riscos, como acompanhar manifestações nas ruas; cobrir greves; fazer viagens com certa aventura e desafios para um TCC (trabalhos de conclusão de curso); acompanhar trabalhos como o da Cruz Vermelha em zonas de guerra e situações similares.
Jornalistas e futuros jornalistas, ainda que com alguns riscos, não podem fugir de situações tais quando estas exigem a presença de alguém que ajude a desvendar o cenário e colocá-lo à disposição do público. E há discussão sobre isso, supervisão de profissionais mais experientes ou de professores jornalistas com experiência no assunto e que sabem o que é ser jornalista. Quando fazem isso, não são burocratas do ensino e nem capachos do Poder.

É com tal perspectiva que para jornalistas consagrados em todo o planeta um carimbo de “secreto” em um documento é apenas um carimbo de “secreto”, que pode representar algo muito estratégico a ser mantido em sigilo, mas também significar que alguém, por razões particulares ou “razões de Estado particulares”, quer esconder algo que beneficiará alguns e prejudicará a muitos. É o interesse particular travestido de público. Jornalistas desmancham tais esconderijos, como Gunter Wallraff e inúmeros outros. E se baseiam em documentos que chegam a eles para iniciar um processo de investigação jornalística ou em investigações que eles próprios decidem a partir de denúncias, constatações ou desconfianças.

Seja na profissão ou no âmbito acadêmico, também é preciso cuidado com a segurança e sempre há algum risco. E quem decide sobre apurar ou não apurar é a profissão, com base no contrato social expresso por uma atividade que se vale da clássica expressão constitucional que integra os textos relativos à Imprensa pós-Revolução Inglesa e Francesa e no cenário em que se consolidou o direito social à informação como um dos fundamentais na era dos direitos civis, como o direito à saúde, à educação… O contrário disso é tentativa de esconder e, em alguns casos, aproxima-se da intimidação e da censura, mesmo no ambiente de Universidade, em que algumas vezes se confunde as autoridades do momento com toda a Instituição. Dentro dela, há profissões. E profissões exigem compromissos acadêmicos, morais e técnicos com a futura atividade profissional, por mais que autoridades não gostem.

O brado de falta de ética confunde tais investigações acadêmico-jornalísticas com etiqueta, com bons modos, coisa que os jornalistas investigadores têm ao cumprimentar as pessoas ou segurar os talheres… Mas no exercício do ofício existe a ética profissional, nem sempre a dos “bons modos”, nem sempre a do baile de debutantes… Existe a necessidade de mostrar algo qualificado e importante à luz do jornalismo em relação ao todo social. E que faz ir por água abaixo a etiqueta, os bons modos, o jornalismo de compadre… O jornalismo que surge, então, é o que incomoda, o que faz perguntas incômodas, o que entra em lugares “proibidos” para verificar; o que legitimamente utiliza a infiltração porque fontes mentem, escondem e enganam o público, maior ou menor público.

Quem intimida sempre se desculpa com o argumento de que não é censura nem intimidação. Mas quer que o profissional ou estudante seja seu porta-voz ou relações públicas. Há profissões que zelam pela imagem, pela fidelidade ao assessorado, que tentam gerenciar crises. Ainda que haja um jornalismo de serviço e suas derivações, o essencial dele, e que dá sentido à área em uma perspectiva ampla, histórica, moral e tecnicamente defensável, é o tipificado pela figura do repórter, o que faz aflorar crises e não o contrário. Gera controvérsia, e esse é o sentido da profissão diante de um espaço público complexo e crescente na contemporaneidade. Seu sentido primordial é informar o público com precisão e sobre assuntos relevantes.

As tentativas de censura à investigação jornalística, a matérias de profissionais, a trabalhos feitos por estudantes em universidades, ampliam o leque de uma vertente autoritária, já alertada por Wallraff quando escreveu várias reportagens na Europa expressa pela clássica frase “nosso fascismo ao lado, lições para o amanhã”. Para evitar isso, o jornalismo deve fazer seu trabalho bem feito, com critérios baseados na relevância social da informação para o público e com precisão, verossimilhança e narração compatíveis com o conceito de credibilidade. E universidades devem assimilar que nem tudo são flores e que, em um curso de jornalismo, estudantes trabalham junto com professores, em geral experientes jornalistas que se titularam e que sabem algo sobre a profissão. E sabem que censura e intimidação não estão em seu dicionário e devem ser combatidos pelo que ocultam: interesses particulares e tentativa de “dourar a pílula”, não hesitando, muitas vezes, em diversos tipos de pressão, que vão da suspensão de verbas a determinados projetos a tratamento diferenciado em relação a um ou outro Curso. Nada pior para a democracia.

Em um cenário em que jornalistas são ameaçados em manifestações; em que autoridades internacionais querem prender ou matar jornalistas ou fontes que revelam documentos comprovadores de danos sociais; em que há tentativa de intervenção na produção laboratorial de cursos de jornalismo, parece haver necessidade de defesa da profissão naquilo que a consagrou perante a sociedade, a reportagem. Sem ela, não há jornalismo. E só reportagem autorizada não contribui para o Jornalismo em sua mais alta magnitude.

Publicado no Observatório da Ética Jornalistica (OBJETHOS) em 21/10/2013

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