Enganam-se os que pensam que Florianópolis – a velha Meiembipe – é um espaço conservador ou reacionário. Aqui, nas veredas da vida real estão as gentes a protagonizar momentos históricos importantes. Foi aqui que começou a agonia do regime militar, com os bravos estudantes – junto com o povo alçado em rebelião – promotores da inesquecível “Novembrada”, assinalando a derrocada do presidente que amava mais o cheiro dos cavalos do que do povo. Foi aqui também que as gentes se levantaram na revolta da catraca, contra as falcatruas dos empresários do transporte coletivo. E, todos os dias, nos bairros, nas vilas, nas comunidades, a população está protagonizando alguma luta importante contra os que querem destruir a vida. Este é um espaço de gente que luta e constrói novas propostas de organizar a vida.
Foi assim nesta quinta-feira, dia 19. Este povo todo, vindo dos lugares mais longínquos da cidade, com faixas, cartazes, camisas pretas, e toda a gana possível, realizou mais um feito histórico. Erguidos em luta, aqueles que amam o lugar onde vivem, vieram protestar contra a farsa montada pela prefeitura municipal, que pretendia homologar um plano diretor da cidade, construído sem a voz das comunidades. Esta gente, que durante três anos ocupou noites e noites de suas vidas para discutir a cidade e encontrar caminhos viáveis para existir neste espaço caótico, acorreu à audiência e decidiu que ali, a sua voz haveria de ser ouvida. E assim se fez!
A cidade e o caos
Meia hora antes da audiência na qual o Instituo Cepa – empresa privada contratada pela prefeitura para fazer o Plano Diretor – iria apresentar a proposta que desenhou, amparada nos desejos dos empresários especuladores, já se vislumbrava a cidade que haveria de assomar daquele plano. Trânsito parado em todas as direções. Parado na Beira-Mar, no túnel, nas imediações do TAC. Buzinas tocando sem parar, gente gritando. O caos. A cidade desenhada para servir aos carros mostrava sua face irracional. Sem um transporte coletivo eficaz, as pessoas optam pelo carro e comandam um festival de engarrafamentos que tornam a mobilidade urbana um inferno. E isso com pouco mais de 380 mil habitantes.
O plano diretor construído pela CEPA quer tornar esse inferno ainda maior. Propostas esdrúxulas como prédios de oito andares na Lagoa da Conceição, de seis no Campeche e por aí afora, prognosticam uma Florianópolis de amanhã com 800 mil habitantes, um milhão. Uma cidade vertical para a classe média. Um lugar onde os ricos haverão de ter suas “ilhas de paz e beleza”, ainda que para isso seja necessário privatizar praias, como a do Costão do Santinho, ou mesmo o maior aqüífero que há na ilha, o aqüífero dos Ingleses. Ali, sob o lençol de água, os ricos jogarão golfe, enquanto as gentes amargarão a falta do líquido que garante a vida.
Pois o povo organizado nas comunidades, nas associações de moradores, disse não. Estudaram a cidade por três anos, construíram propostas, apresentaram alternativas, saídas viáveis para a vida, para as moradias, o transporte, para tudo. Só quem vive numa cidade sabe o que nela falta. O povo tem a resposta para cada questão. E isso foi feito em audiências públicas, oficinas, reuniões, tudo documentado. Por que então, a prefeitura vinha dar um golpe, impondo um plano que a população não quer? A cidade iria se levantar. E foi o que fez.
A audiência
A noite baixava sob a capital parada e caótica. Mas as pessoas caminhavam. Vinham de todo canto, de ônibus, de bicicleta, de carro, à pé. Encheram o TAC, ocuparam as calçadas, eram mais de mil. Multidão. Vieram os pescadores, os nativos, os ecologistas, as senhoras de idade, os estudantes. Vieram os líderes comunitários, os sindicalistas. Todas as cores e tendências políticas unificadas na luta contra a especulação e a destruição da cidade. Foi bonito de ver.
O presidente do IPUF iniciou a audiência, chamou o presidente do Instituto CEPA. Já começaram as vaias. Cada autoridade chamada era apupada. Manifestação pacífica, direito das gentes. As caras, na mesa, se torciam, incomodadas. As vaias seguiam. Átila Rocha dos Santos, presidente do IPUF, mostrou a cara autoritária da prefeitura. “Ou param ou suspendo a audiência e chamo a polícia”. A tropa de choque já aguardava do lado de fora, pronta para agir, porque é comum aos dirigentes que não são democráticos, terem medo do povo. Foi o que bastou. A gritaria foi geral.
Então, no meio do corredor assomou o vereador Ricardo Camargo Vieira (PCdoB), fazendo aquilo que deveria fazer um político que tem mandato do povo: com um megafone, suplantando o som do mestre de cerimônias, gritou o protesto das gentes. “Esta audiência é uma farsa, esse não é nosso plano”. A ação do Dr. Ricardo foi a deixa para que cada pessoa que ali estava quisesse dizer sua palavra. O presidente do IPUF gritava, chamando a polícia. Entrou a guarda municipal, mas nada mais detinha as gentes. Elas foram subindo no palco e revezando o megafone. As autoridades da mesa escapuliram, o diretor do IPUF mandou cortar o som. Ninguém se importava. Tinham suas gargantas e reivindicavam. Cada bairro, cada liderança, pessoas comuns, todos tinham algo a dizer. “Esse não é o nosso plano”, bradavam.
No meio do protesto uma cena intrigante mostrou bem a cara da imprensa local. O jornalista da RBS adentrou ao teatro, e, imperturbável, atravessou o corredor onde as pessoas se aglomeravam com faixas e cartazes, mostrando que ali acontecia mais um momento histórico na vida da cidade. Pois o jornalista nem olhou para a vida que se expressava no teatro lotado. Seguiu até o palco e foi lá para trás, onde estavam os dirigentes da prefeitura, protegidos pela guarda municipal. A voz do povo não haveria de sair da Rede dos Baixos Salários, na rede da mentira. Simbiótica relação da mídia entreguista com os que querem destruir a cidade. É tudo parte de um mesmo grupo.
O povo seguiu com sua audiência. Já não havia dirigentes da prefeitura na mesa, o palco era das lideranças comunitárias. Uma assembléia popular. Democracia direta. Decidiu-se então dar seguimento a audiência pública. Foi feita uma ata e todos assinaram. Por um momento se fez uma cena mítica. No corredor, as pessoas faziam fila, assim como na missa quando vão comungar. E, para quem olhava emocionado, era isso mesmo. As gentes comungavam da mesma idéia, do mesmo desejo: proteger a cidade, garantir vida boa e bonita para todos.
Na ata, lavrada de forma coletiva, a decisão popular: “Este não é nosso plano. Não aceitamos essa imposição da prefeitura. Queremos a decisão tomada nestes três anos de encontros e participação comunitária”. O documento será registrado e enviado à prefeitura. A audiência se fez e, embora o presidente do IPUF tenha negado a palavra ao povo, o povo a tomou. E a disse.
No jornal Diário Catarinense do dia seguinte, veio a nota lacônica: confusão impede aprovação do plano diretor e ele será enviado direto para a Câmara de Vereador. Logo, segue a arrogância e a surdez do executivo municipal. A prefeitura continua fazendo de conta que não ouve a voz da população. As comunidades disseram não, mas eles não escutam. Só conseguem ouvir a voz dos que depredam e destroem. Estes sim fazem “confusão”, como diz a reportagem patética, expressão do péssimo jornalismo que é praticado pelas empresas locais.
Mas, o povo que estava ontem no TAC acredita na sua força. Vai usar a justiça, vai exigir posição do Ministério Público, acredita também na visão honesta de pessoas como a procuradora Ana Lucia Hartmann, que foi ovacionada pelas gentes a gritarem seu nome, em honra de sua postura séria e de defesa da integridade da vida. O povo se organiza e cresce em número e fortaleza. Já está marcado um protesto para este sábado, dia 20 de março, na Lagoa da Conceição. E outro, ainda maior, no dia 23 de março, dia do aniversário da cidade, em frente da Assembléia Legislativa, às seis horas da tarde. A cidade vai se movendo, o povo vai aprendendo, e as gentes fazem andar as palavras democracia e liberdade. A cidade é do povo e é ele quem tem de decidir. Não meia dúzia de empreiteiros e políticos de meia pataca.
Florianópolis pode viver uma hora histórica. É chegado o momento de todos saírem às ruas a defender a vida e o direito de se existir em harmonia com a beleza que é este lugar. Não foi sem razão que ao final do bonito momento de rebelião, as pessoas, de olhos marejados, se puseram a cantar a música do Zininho, o hino da ilha: “um pedacinho de terra perdido no mar, um pedacinho de terra, beleza sem par”… E naquelas caras de gente trabalhadora, a mais absoluta certeza: esse pedacinho não está perdido, não sem luta!
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