Ricardo José Torres
Doutorando em Jornalismo no POSJOR e pesquisador do objETHOS
Vivemos tempos difíceis, um período de descrença e de desengajamento, com a multiplicação de problemas e falta de alternativas. Convivemos com o ápice do jornalismo hegemônico parasitário que alcançou níveis inacreditáveis de degradação. A entrevista do presidente Michel Temer ao programa Roda Viva, da TV Cultura, no dia 14 de novembro, demonstrou como a atividade jornalística pode ser inócua e prejudicial para o entendimento de questões sociais importantes. Em uma verdadeira conversa de “comadres” a bajulação, a submissão e a empáfia deram o tom da entrevista. Os entrevistadores não confrontaram o entrevistado com problemas evidentes de sua gestão, especialmente os relacionados às medidas que colocam em risco os direitos civis e sociais previstos na Constituição brasileira.
Os jornalistas Glenn Greenwald e Thiago Dezan, do The Intercept, chamaram a entrevista de “conversa fiada”: “Com o passar dos minutos, ficava cada vez mais claro que o político e os jornalistas, que evidentemente o adoram, se inclinavam a um terno abraço coletivo. Quando a entrevista chegou ao terceiro bloco, já estavam todos gargalhando e rindo com considerável pujança das piadas insossas do presidente, como fazem empregados de baixo escalão na primeira semana de emprego para agradar o patrão. Assistindo à entrevista, era possível se sentir como uma mosca na parede de um coquetel de gala da família real, onde os convidados de honra – não completamente bêbados, mas relaxando à medida que incrementavam o nível etílico com taças e mais taças do mais requintado Chardonnay – exploravam os limites da decência no comportamento social”.
A entrevista demonstrou um nível de desinformação e uma perspectiva degradante de jornalismo que está alinhada ao que Maffesoli (2012) chama de “injunções” que vêm do alto e que, atualmente, estão sendo questionadas. Para o autor, esse tipo de jornalista tem um fim quase programado. “Como isso se manifesta? Assim como foi o caso em outras épocas de mudança, essas espécies condenadas empregam uma linguagem que só elas compreendem. Língua do palácio que, como analisou Maquiavel, não tem nada a ver com o da praça pública. Trata-se de um fenômeno recorrente. Lembremos o que foram os debates bizantinos sobre ‘o sexo dos anjos’. Uma cruel lei da linguagem fazendo com que as palavras, com muita frequência, sejam os epitáfios do que elas designam. As injunções verticais dos pedagogos modernos – professores, jornalistas, tecnocratas, políticos, tomadores de decisão de todos os tipos – só designam as armadilhas, isto é, as tumbas onde a vivaz e efervescente socialidade não pretende deixar-se aprisionar” (p. 20).
Em meio a comentários efusivos relacionados ao amplo apoio que o presidente tem no Congresso Nacional, a sua história de amor com Marcela e seu próximo romance, Temer demonstrou o total desconhecimento sobre o sentido dos movimentos de ocupação de escolas e universidades. Para ele as ocupações são apenas um protesto físico e não argumentativo. Disse admitir as manifestações lamentando, entretanto, ao lembrar seu tempo de estudante: “No meu tempo você examinava, discutia, chamava pessoas para dialogar e, às vezes, até protestava fisicamente. O que eu vejo hoje é que há muito protesto físico. Não há protesto argumentativo, oral, intelectual”. Acusar as ocupações de não serem protestos intelectuais é confessar a absoluta ignorância sobre a dinâmica desses espaços e os objetivos da maioria dos manifestantes.
O que resta da democracia
As ocupações são o que há de mais democrático nesses tempos de descrença e declínio da representatividade e da democracia. Elas revelam o vigor da palavra, a importância da indignação, a esperança da horizontalidade, a politização, a deliberação. Podem haver problemas e dissidências, mas as escolas, institutos e universidades ocupadas denunciam a insatisfação e projetam a insubmissão. É ilegítimo defender o direito à educação pública, gratuita e de qualidade? É ilegítimo contestar uma reforma do ensino médio que não ouviu os maiores interessados, os alunos? É ilegítimo questionar um projeto (Projeto Escola Sem Partido) que impede a livre manifestação de ideias e pensamentos? Os estudantes envolvidos nas mobilizações são antes de tudo cidadãos exercendo a sua cidadania. São indivíduos insatisfeitos contestando uma proposta de emenda à constituição que congela os gastos nas áreas da educação e da saúde pelo período de até 20 anos e compromete serviços essenciais para a maioria da população.
A criminalização de manifestações e ocupações, que ocorrem de forma pacífica, é penosa para o sistema democrático. Grupos contrários aos movimentos estão recorrendo ao Ministério Público Federal pelo direito de assistir aulas e utilizar laboratórios. Alguns conflitos também estão ocorrendo. O tensionamento de visões antagônicas é natural e enriquece o processo democrático, entretanto, qualquer ato de violência deve ser repudiado e os aspectos políticos das ocupações devem ser enaltecidos. Ações políticas não podem ser criminalizadas e devem ser tratadas como tal. Elas deveriam estar nos espaços “nobres” de política dos veículos de comunicação que só são concedidos às temáticas relacionadas com a política palaciana. As ocupações apresentam um sentido mais coletivo e uma dimensão verdadeiramente humana do exercício da política. As ações políticas e de convivência das ocupações envolvem uma responsabilidade difícil de encontrar nos palácios de governo.
Os movimentos de ocupação chamam a atenção da sociedade para as mobilizações que estão nas margens do sistema político-institucional formal e buscam discutir e apresentar argumentos. Esses fatores apresentam a emergência do cidadão comum, do aluno engajado que exige pluralidade por meio da subversão. O jornalismo homogêneo e opaco, especialmente dos veículos de comunicação hegemônicos, não cumpre a sua função mais essencial: fomentar o debate público qualificado. Sem essa base o ato jornalístico torna-se apenas interesse e a democracia e seus valores fundamentais apenas um álibi para acentuar as desigualdades e criar um universo de conformidade e sujeição.
Por isso, inciativas de coletivos de jornalismo e de jornalistas independentes estão literalmente ocupando as lacunas deixadas pelas ações jornalísticas parasitárias. Essas formas antagônicas de abordagem jornalísticas configuram-se como potenciais rupturas nas convenções e entendimentos do jornalismo hegemônico. Esses formatos alternativos são autênticos não necessariamente pela disseminação de conteúdo, mas pelo contraponto que oferece um horizonte de mudanças, o qual só pode ser norteado por questionamentos e inconformidades permanentes.
Referências
DEZAN, Thiago; GREENWALD, Glenn. Fofocas, gargalhadas, romance e diversão de montão: as estrelas da mídia encontram seu presidente. 15/11/2016. The Intercept. Disponível em: http://migre.me/sHf2z Acesso em: 23 nov. 2016.
MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.