Dairan Paul
“Não é possível continuar neste caos em todos os sentidos e em todos os setores. Tanto no lado administrativo como no lado econômico e financeiro. Basta de farsa”.
“Chegou a hora de os brasileiros de bem, exaustos diante de uma presidente que não honra o cargo que ocupa e que hoje é o principal entrave para a recuperação nacional, dizerem em uma só voz, em alto e bom som: basta!”.
Entre as duas aspas, há uma diferença de quase 52 anos; as semelhanças, no entanto, são gritantes. A primeira citação provém do editorial Basta!, escrito pelo jornal Correio da Manhã em 31 de março de 1964, às vésperas do golpe militar que depôs o presidente Jango Goulart. Na segunda sentença, temos o recente editorial do Estadão – Chegou a hora de dizer: basta! –, de 13 de março de 2016, data em que uma série de manifestações contra o governo assolou o país.
As aproximações entre os textos (a começar pelo título, perpassando também o seu conteúdo) não se configuram exatamente como uma novidade ao longo da história do jornalismo – algumas destas reincidências já foram comentadas pela pesquisadora Amanda Souza de Miranda, em artigo sobre a cobertura midiática no governo de Getúlio Vargas. De 1964 até 2016, as estratégias pouco mudaram: nos dois editoriais citados, a ideia consiste em personalizar uma crise política na figura do administrador incompetente – “João Goulart não tem a capacidade para exercer a Presidência da República e resolver os problemas da Nação dentro da legalidade constitucional”, ou, ainda a referência à presidenta Dilma Rousseff como uma pessoa “sem nenhuma vocação nem para a política nem para a administração”.
Por outro lado, o editorial do jornal Estado de S. Paulo vai ainda além e chega a soar ofensivo, podendo, inclusive, atentar contra parte de seus próprios leitores. Petistas são designados como uma “matilha”, “tigrada”, “essa turma (…) quase marginal”. Trata-se de um discurso que beira o ódio, partindo de premissas pretensamente universais (“a maioria dos brasileiros” desejam a destituição de Dilma, segundo “pesquisas de opinião” não citadas) e apelando para a moral e os bons costumes (“cidadãos de bem”, “famílias indignadas”). A pressão, à la 1964, também está presente: “tudo isso poderia ter sido evitado de Dilma tivesse tido a grandeza de renunciar ao cargo”.
Há quem diga que o veículo, ao escancarar sua opinião – uma editoria não serviria para isso, afinal? –, praticaria um jornalismo supostamente mais honesto, despido de seu véu da imparcialidade. Novamente, um argumento antigo: a pluralidade de opiniões é frequentemente evocada para dar vazão a discursos que criminalizam grupos e movimentos políticos. É claro que pontos de vista divergentes são salutares à democracia, mas a afirmação não deve terminar aí: tais opiniões, inseridas em uma instituição jornalística, e não em uma postagem de rede social, possuem o compromisso ético mínimo de qualificar o debate público. Faltar com o respeito à figura pública da presidenta Dilma Rousseff e de seus eleitores passa longe de resolver os problemas estruturais que a política brasileira apresenta. Não parece exagero classificar a postura editorial do Estadão como ativista ou panfletária.
O discurso inflamado do jornal considera que petistas são pessoas ameaçadoras, “com a pretensão de se impor pela força”. Não há surpresa aqui: em texto anterior, a pesquisadora Sylvia Moretzsohn alertava para o seletivo olhar direcionado às reações contra a derrubada do governo Dilma, entendidas como violentas. “Mais ou menos como no discurso recorrente que acusa Lula e o PT de dividirem o país entre ‘nós’ e ‘eles’, como se Lula e o PT tivessem inventado a luta de classes”. Uma invenção nada mais do que cínica: em seu editorial, Estadão sentencia que “já ficou claro, no entanto, que esse punhado de irresponsáveis nada pode contra a maioria dos brasileiros honestos”.
Desinformações a torto e a direito
O problema maior é notar que as especulações não são exclusividades do Estadão. À tarde, durante as manifestações de 13 de março, GloboNews reuniu seu time de repórteres para realizar a cobertura dos protestos. No estúdio, como de costume, jornalistas palpitam: “acho que está claro que o governo, no modelo que está, não sobrevive”, diz Cristiana Lôbo, e continua: “não é que o país está dividido. Ele foi dividido nas eleições”. Após ser vaiado na tarde de protestos, o senador Aécio Neves, citado em delações de Alberto Youssef e Delcídio do Amaral, é timidamente mencionado pela jornalista, de forma indireta: “o apoio à Lava Jato é o guarda-chuva para dizer não à Dilma, ao Lula e ao PT. Como eles são o poder central, hoje foca neles. Mas se tiver mais… foca nesses também”.
Se, por um lado, as especulações travestidas de assertivas tomam conta do estúdio durante a transmissão, parece haver certa graça na cobertura de rua feita pelos repórteres. Frequentemente, o valor da democracia é enaltecido, ao lado do pacifismo dos manifestantes e do recorde de venda dos bonecos de Lula e Dilma pelos ambulantes. Tudo são camisas da seleção, patos inflados e Power Rangers.
Em outro exemplo grotesco, na semana que precede as manifestações, O Globo escreve um perfil da juíza Maria Priscilla Veiga Oliveira, responsável por analisar o pedido de prisão feito ao ex-presidente Lula. Descrita como uma apaixonada por gatos, a reportagem verifica as predileções da profissional através de seu perfil no Facebook. O ultimato acontece quando o jornalista liga para a mãe da juíza: “qual é o palpite da senhora, ela prende ou não o ex-presidente?”, pergunta o repórter. Como resposta, recebe: “meu filho, ligue mais tarde e pergunte pra ela”.
Especulações demais e informações de menos abrem um debate sobre a cobertura jornalística em casos excepcionais, de acontecimentos complexos, com múltiplos atores. Como lidar com um momento em que mesmo a dita “imprensa de referência”, como se convencionou chamar, parece mais interessada em palpites do que fatos? Há que se lembrar, aqui, o papel de contrainformação presente nas redes sociais, debatido anteriormente pela pesquisadora Lívia Vieira. Aproximação de fontes com leitores e o questionamento às narrativas de grandes jornais estabelecem novos discursos – embora eles não necessariamente se legitimem como dominantes em relação às versões “oficiais” e, por vezes, ainda reproduzam uma lógica que não consegue ir além do embate entre “coxinhas” e “petralhas”. Por outro lado, a última crítica também cabe aos jornais, comprometidos ora em abraçar o governo acriticamente, ora em detoná-lo – o debate em forma de torcida Fla x Flu, quem diria, também atinge jornalistas imparciais.
Como sempre, quem perde é o leitor, sem saber onde se informar. Momentos como esse são mais propícios à desinformação, aos boatos e ao empobrecimento do debate público. Diante desse cenário, ainda há quem fale na crise do jornalismo como sendo apenas financeira?
[divider style=”solid” top=”20″ bottom=”20″]
Mestrando no POSJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS