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Acorda, Brasil

Damián Loreti olhava com ciúme para o outro lado da fronteira. O Brasil tinha tantos grupos que discutiam a necessidade de democratizar a comunicação e o debate era tão avançado que o veterano estudioso do tema sentia saudável inveja. Na Argentina da virada do século, o tema estava restrito a algumas dezenas de “maníacos”, mas em pouco tempo a equação se inverteu. Quem acompanha o assunto do lado de cá olha para o lado de lá admirado.

“Sem vontade política é impossível. Sem um bom projeto, também”, resume o decano do curso de Comunicação da Universidade de Buenos Aires (UBA) sobre a Lei de Meios, sancionada em 2009. O projeto existia havia tempos, composto por 21 objetivos, e a vontade política amadureceu na entrada do novo século, quando centenas de entidades se somaram na Coalizão por uma Radiodifusão Democrática. Corria 2008 e o governo de Cristina Kirchner estava em pé de guerra com os representantes do agronegócio.

Não tardou para que o gabinete presidencial se desse conta de que circulava somente uma versão dos fatos: a dos empresários, fruto da concentração de emissoras de rádio e TV nas mãos do grupo Clarín, comparável às Organizações Globo. Apenas sete cidades recebiam mais de um sinal de canal de televisão aberta. Sem programações que mostrassem o mundo de diferentes pontos de vista, estava imposta uma verdade única. Era hora de tirar o pó do projeto apresentado pela sociedade quatro anos antes.

Na ocasião, o Brasil preparava a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Pela primeira vez reuniram-se governos, empresários – embora alguns tenham se negado ao debate – e pessoas dos mais diversos segmentos em torno do objetivo de tornar a produção de informação um retrato mais fiel da diversidade cultural, geográfica e política do país. Foram centenas de reuniões primeiro nas cidades, com propostas depois levadas a edições estaduais e, por fim, ao encontro nacional, em dezembro de 2009.

O então ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, Franklin Martins, experiente jornalista com passagens por Globo e Bandeirantes, começou a elaborar um anteprojeto para promover a democratização da comunicação. O texto tomou como base os debates da conferência nacional e as experiências de diversos países de avançada democracia – entre os quais a Argentina, já com sua nova legislação em vigor. O esboço de Franklin foi repassado ao ministério de Dilma Rousseff, mas ainda não andou.

Como se faz democracia

Cem mil mulheres chegam a Brasília vindas de todas as partes do território nacional. São trabalhadoras rurais, caminham durante dias e são recebidas pela presidenta da República para discutir reforma agrária. Em outro dia, 20 mil produtores rurais ocupam a Esplanada dos Ministérios. Querem que o Congresso vote as mudanças na legislação florestal para poder desmatar além dos limites atuais. Dois temas relevantes para a sociedade? Não para a Globo. A Marcha das Margaridas recebeu 18 segundos da edição de 17 de agosto de 2011 do Jornal Nacional. Já o churrasco da maior entidade ruralista, 127 segundos.

Margaridas

“Ninguém quer acabar com a Globo nem democratizar a Globo. Ela cumpre um papel político e cultural no Brasil”, diz Renata Mielli, da coordenação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Em outras palavras, cada empresa pode transmitir o que achar importante, mas as margaridas, as acácias, as violetas e todas as flores têm direito a uma emissora que as represente – e todo cidadão, o direito de buscar e encontrar uma cobertura diferente. “O objetivo é fortalecer um campo público de comunicação e discutir regras transparentes para a concessão de canais.”

As estações de televisão ou de rádio que escolhemos todos os dias são um espaço público. Esse espaço é invisível, está no ar, mas é limitado, o que significa que não se pode abrir infinitas emissoras. Essa restrição torna necessária a presença do Estado para regular e disciplinar a distribuição das concessões, feitas mediante leilões válidos para um determinado período. Na prática, é como se uma pessoa alugasse uma frequência.

Como qualquer contrato de aluguel, há direitos e deveres. Se descumpridos, implicam advertência, multa e até rompimento do vínculo. O Brasil, por enquanto, não discutiu essas regras. Há conceitos apresentados pela Constituição a ser ­refinados para, caso o inquilino desrespeite o acordo, o locatário – o povo bra-sileiro – poder solicitar de volta o imóvel, ou melhor, a frequência.

O texto constitucional de 1988 diz que o setor não pode ser alvo de monopólio ou oligopólio, mas não estão definidos quais são os parâmetros que configuram essa concentração. Os veículos de rádio e TV devem dar preferência a conteúdos educativos e culturais – porém, sem esmiuçar o que isso significa, a sociedade não tem como cobrar a aplicação.

“O discurso da censura é o discurso dos censores”, lamenta João Brant, do Coletivo Intervozes, atuante na batalha pela democratização da comunicação. “A regulação precisa incidir diretamente sobre a questão do pluralismo e da democracia e garantir que as diferentes vozes e perspectivas fluam ao debate público.”

Assim ficou definido nas nações europeias e nos Estados Unidos, e é desse modo que deseja a Unesco, órgão das Nações Unidas para a educação e a cultura. Toby Mendel, consultor internacional da entidade, lembrou durante um seminário realizado em Brasília em 2010 que liberdade de expressão não é só o direito de ouvir: é o direito de falar. O preceito é reafirmado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que enxerga a comunicação como um direito humano básico, a exemplo da saúde, da educação e da alimentação. Se há conselhos municipais, estaduais e nacionais para discutir essas questões, por que a comunicação ficaria de fora?

Na Argentina, diferentemente da Europa, as concessões sempre estiveram com o setor privado. Sempre esteve evidente que poder e comunicação andam juntos, e rapidamente as frequências de transmissão foram distribuídas ­entre amigos. “Se há algo claro é que o mercado não assegura pluralismos. Os que não têm dinheiro não falam”, ­adverte Loreti. Quadro parecido com o brasileiro. As outorgas são de atribuição do Ministério das Comunicações e o governo precisa de apoio no Congresso. Parlamentares querem o seu veículo para controlar o noticiário em sua região.

A organização Transparência Brasil encontrou 52 deputados e 18 senadores associados a empresas concessionárias de comunicação. A renovação das outorgas é atribuição dos parlamentares.

Por essa e por outras, a Constituição prevê que eles não participem de concessões de serviços públicos, para evitar que legislem em causa própria. Em dezembro passado, o Intervozes e o PSOL ingressaram com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar essa situação.

Pontapé inicial

Chega o domingo à tarde e você está sedento pela partida de seu time. Liga a tevê e aparece a arquibancada repleta. Ajeita-se, separa o amendoim, a cerveja, junta os amigos. Começa o espetáculo. A câmera continua mostrando a torcida. Um narrador conta o que ocorre no gramado – e você, que não comprou o pacote premium, não verá o jogo.

Até 2009, os direitos de exibição do futebol eram um monopólio na Argentina. O Clarín, detentor desses direitos, é também proprietário de operadoras de TV a cabo. Os demais operadores, impedidos de exibir o esporte popular, fecharam as portas. O Clarín passou a controlar a maior parte dos assinantes, 65% da população, e o espectador, sem direito de escolha, submeteu-se ao “pague para ver”, o que deu ao grupo uma enorme escala financeira. O quadro foi revertido quando Cristina declarou o futebol bem de interesse público e as transmissões passaram à TV aberta.

No Brasil, as operadoras que transmitem as partidas controlam mais de 90% da base de assinantes, 11 milhões de pessoas. No último Campeonato Brasileiro, a Globo, que tem o monopólio do setor, convenceu mais de 1 milhão deles a aderir ao “pague para ver”. O acesso às partidas custou entre R$ 40 e R$ 60 ao mês.

Quando apresentou suas vantagens para a renovação do contrato com os clubes, a Globo lembrou que chega a 99,67% dos lares brasileiros. Uma situação que mataria de susto estudiosos da comunicação na França. Nenhuma emissora daquela nação pode atingir mais de 20% da audiência nacional – se passar disso, deve se livrar de canais até que volte aos níveis permitidos. Há restrições também à chamada propriedade cruzada, que é o controle por um mesmo grupo empresarial de veículos de rádio, TV, internet e impressos.

Na Argentina, o Clarín diz contar com 237 licenças de rádio e TV, além de jornais, revistas e páginas na rede mundial de computadores. Suficiente para endeusar ou demonizar a imagem de qualquer governo ou personalidade e condenar qualquer cidadão acusado de um crime pelo qual não foi julgado. Quando os Kirchner se deram conta do problema, os 21 pontos defendidos pela sociedade civil foram encaminhados ao Congresso, passaram por mais de um ano de discussão, receberam centenas de aportes, votação e em 2009 estavam sancionados. O mote “Hablemos todos”, falemos todos, levou milhares às ruas e a população se apropriou do tema.

O Clarín conseguiu rapidamente uma liminar que impede colocar em curso os dispositivos anticoncentração. Espera-se que a Corte Suprema se manifeste neste ano a favor da lei, o que forçará o conglomerado a se desfazer de muitas de suas licenças, várias obtidas pelo grupo com a última ditadura (1976-1983).

O espaço de frequências ficará em três fatias iguais: estatal, privado com fins de lucro e privado sem fins de lucro, destinado a sindicatos e emissoras comunitárias. Os indígenas foram incluídos na fatia do setor estatal, conquistaram frequências de rádio, reuniram em todo o país 250 comunicadores e aguardam a montagem da primeira emissora voltada aos povos originários, o que deve ocorrer em 2012. “Há que romper os cercos que foram criando monopólios da comunicação e as distorções da identidade indígena”, relata Matías Melillán, mapuche da província de Neuquén, na Patagônia.

Dividir o bolo

Representante dos povos originários no Conselho Nacional de Comunicação Audiovisual, Matías diz que a comunicação já era debate antigo entre os indígenas, que finalmente passaram a ter voz e agora entram na via de mão dupla da informação. “Não se pode ter preconceito, nem nutrir uma visão que nos folclorize.”

Além de garantir concessões a grupos até então não representados, a Lei de Meios prevê que 30% da programação terá de ser exibida com conteúdo local e, nas maiores cidades, 30% da grade diária de atrações será de produção local independente. Nenhuma rede poderá controlar mais de 35% da audiência nacional.

No Brasil, segundo o projeto Os Donos da Mídia, há 34 redes de comunicação, mas mais da metade das emissoras está afiliada a quatro delas (Globo, SBT, Band e Record). O grupo Rede Bahia controla dez veículos de comunicação no estado, entre os quais seis geradoras de TV e três rádios, que costumam retransmitir a programação da Globo. “Nós queremos nos ver na televisão. A televisão neste país é Sudeste, ela não é a cara de todo o povo brasileiro”, queixa-se Julieta Palmeira, médica e integrante do recém-criado Conselho Estadual de Comunicação da Bahia.

“Queremos incentivos à produção independente e à produção regional para que nosso povo possa se ver na televisão.” Como as chamadas “cabeças de rede” ficam no Sudeste, concentra-se aí 60% do faturamento em publicidade.

Na Argentina, a expectativa é garantir a criação de postos de trabalho e o desenvolvimento de um mercado de comunicação fora de Buenos Aires, com o que se desconcentra também a verba publicitária e se assegura a valorização das notícias e dos aspectos culturais de cada região, sem que a visão portenha se transforme na visão nacional. Para os grupos que querem discutir a regulação, reside aí uma das explicações para que as redes de televisão brasileiras não tenham a mesma disposição.

A distribuição da publicidade do governo brasileiro passou por um processo importante de desconcentração ao longo da última década. Em 2003, receberam recursos de campanhas federais 499 ­veículos em 182 municípios; em 2010, ­foram 8.094 veículos em 2.733 municípios – mas a maior fatia ainda fica com a televisão aberta.

Questionado pela repórter Lúcia Rodrigues, da Rádio Brasil Atual, sobre a lentidão na comparação com o país vizinho, o ex-ministro Franklin Martins lançou uma hipótese: “O Brasil não caminha galopando, tirando as quatro patas do chão ao mesmo tempo como um potro argentino, que é muito rápido, mas às vezes corre para um lado e depois é obrigado a voltar porque não tinha criado um consenso. O Brasil é como um elefante, para movimentar uma pata, precisa ter as outras três no chão”.

A metáfora, se não bate de frente, também não alivia para o ministro das Comunicações do governo Dilma, Paulo Bernardo – em cuja gaveta hiberna o anteprojeto de regulação rascunhado há quase dois anos. De acordo com o Observatório do Direito à Comunicação, Bernardo afirmou durante um seminário dias antes do Carnaval que a revisão do projeto de marco regulatório já estaria concluída e deverá ser objeto de consulta pública em breve. O ministro não mencionou prazos e ponderou que vai precisar conversar mais dentro do governo.

Em seu primeiro ano de gestão, Dilma quase não tocou no assunto. Agora, o tema parece ter dado um sinal de vida. Na mensagem do Executivo ao Congresso Nacional, na abertura do ano legislativo de 2012, é citada a pretensão do governo de concluir o Regulamento do Serviço de Radiodifusão (de 1963). E também de “prosseguir com ações voltadas à atualização do marco legal das comunicações eletrônicas”. Os brasileiros ávidos por um sistema mais democrático esperam, enfim, ter tocado o coração da presidenta. Sem a ajuda dela, o elefante segue adormecido, sufocando as vozes de quem ficou lá embaixo.

Ouça um bom conselho

A Bahia inaugurou em janeiro o primeiro conselho estadual de comunicação do Brasil. Outros projetos do gênero surgiram em 2010, mas o apoio do governo de Jaques Wagner foi decisivo para que o colegiado baiano, fruto de uma iniciativa de movimentos da sociedade, fosse instalado.
A ideia é discutir o fortalecimento da rede pública de televisão e rádio, o papel das emissoras comunitárias e a distribuição de verbas publicitárias estaduais. “Isso traz desenvolvimento regional à medida que se apoia o produtor de conteúdo onde ele estiver”, diz Julieta Palmeira, empossada no Conselho Estadual de Comunicação da Bahia em 10 de janeiro. Julieta, também do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, considera importante o fato de empresários, sociedade civil e governo terem se sentado à mesma mesa para debater o tema, apagando o preconceito em torno dos militantes. “O conselho tem caráter deliberativo, e isso ocorreu com a aceitação dos empresários, o que não é uma coisa menor.”

A Rede Globo foi a exceção. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), representante dos maiores grupos midiáticos, que já havia se negado a participar da Conferência Nacional de Comunicação em 2009, tampouco quis integrar o grupo de trabalho que elaborou o projeto do conselho baiano. Em nota, a Abert manifestou considerar inconstitucional a iniciativa por acreditar se tratar de uma prerrogativa da Federação, vetada aos estados. “A Constituição brasileira é clara ao garantir o exercício da liberdade de expressão e de imprensa, da manifestação do pensamento e de opinião, sem nenhum tipo de censura, licença ou controle”, acrescenta.

“Não pode haver temas interditados para o

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