O Projeto de Lei Orgânica de Comunicação do Equador, que nesta quarta-feira (11) entrará em votação na Assembleia Nacional, estabelece as garantias e normas dos direitos da comunicação estabelecidos na Constituição de 2008, que é talvez a mais avançada na matéria no continente. Se a lei for aprovada, marcará um avanço significativo para as reivindicações históricas do movimento pela democratização da comunicação, não só do Equador, mas do continente.
Este projeto, cuja votação se anuncia fechada, abre o caminho para uma mudança estrutural chave, uma virtual “reforma agrária do ar”, ao estabelecer uma repartição das frequências de rádio e televisão em três partes: 34% para os meios comunitários, 33% para os meios públicos e 33% para os meios privados.
Segundo o projeto de Lei, que reconhece a comunicação social como um serviço público que deve ser prestado com responsabilidade e qualidade, os meios comunitários são aqueles “cuja propriedade, administração e direção correspondem a comunas, comunidades, povos e nacionalidades, coletivos ou organizações sem fins lucrativos”. Operarão em igualdade de condições com os outros setores, mas se beneficiarão, também, de políticas públicas para sua criação e fortalecimento, como “mecanismo para promover a pluralidade, diversidade, interculturalidade e plurinacionalidade” (Art. 92). Além disso, sob a política de favorecer a economia solidária, prevê-se que as entidades estatais contratem publicidade e serviços em tais meios para a difusão de conteúdos educativos e culturais.
Outro aspecto importante da normativa é que impedirá a concentração oligopólica, ao estabelecer um limite para uma mesma pessoa (natural ou jurídica) de uma só frequência para matriz em AM, uma em FM e uma de televisão, em todo o território. Atualmente, cerca de 90% das frequências estão em mãos privadas. A lei prevê que para alcançar de forma progressiva a divisão aos setores público e comunitário, será priorizada a concessão a estes dois setores até alcançar as porcentagens correspondentes, utilizando as frequência disponíveis e as que serão revertidas ao Estado, pelos motivos dispostos na Lei e na Constituição.
Parte do espectro radioelétrico será liberado mediante a reversão daquelas frequências que foram concedidas sem seguir o devido processo legal ou cujos concessionários tenham feito uma utilização irregular das mesmas. A Auditoria de Frequências, realizada sob o mandato da Constituição, seria a base para determinar essas reversões, que poderiam ser mais de 200, segundo informou o Presidente da Assembleia, Fernando Cordero. Tais frequências deverão reverter-se de imediato ao Estado. Além disso, desde a consulta popular de 2011, a Constituição proíbe que as empresas de comunicação, seus diretores ou acionistas tenham participação acionária em empresas de outro setor econômico.
Outras medidas, destinadas a estimular a produção nacional, preveem a obrigação de ter 40% de conteúdo nacional nos meios audiovisuais e 10% de produção nacional independente. Nas rádios, 50% da música deve ser produzida, composta ou executada no Equador. Além disso, a publicidade deve ser produzida no país.
No projeto de Lei são estabelecidas também normas para uma utilização responsável da informação por parte da imprensa. Por exemplo, estipula-se que a informação publicada deve ser devidamente verificada e estabelece-se a obrigação – com as sanções correspondentes em caso de omissão – de retificação de informações falsas ou inexatas, e o direito de réplica quando uma pessoa considerar que a informação afeta seus direitos à dignidade, honra ou reputação.
Garante, ainda, os direitos dos profissionais da comunicação, como a cláusula de consciência, reserva da fonte e segredo profissional e direitos trabalhistas. Um dos temais mais polêmicos foi a titularização obrigatória de jornalistas. O debate girou em torno da questão sobre a violação ou não da liberdade de expressão da população, mas também sobre as garantias do direito cidadão de ser devidamente informado, o qual exige destrezas profissionais. Em sua última versão, o projeto de Lei prevê que quem exercer de forma permanente o jornalismo deve ter o título profissional (salvo editorialistas, colunistas de certas seções especiais e aqueles que comunicam em idiomas indígenas). Está previsto um prazo de seis anos para que quem já trabalha em um meio adquira seu diploma.
Uma lei construída com a sociedade
Assim como sucedeu na Argentina, boa parte da imprensa comercial e setores da direita têm unido forças, há 2 anos, contra o que, antes de se escrever uma linha, apelidaram de “lei da mordaça”, sob a premissa de quem em matéria de comunicação a melhor lei é a que não existe. É evidente que a lei afetará interesses poderosos, o que sem dúvida explica sua tenaz oposição, que justificam sob os protestos por “liberdade de expressão”. Um dos pontos mais polêmicos tem sido a composição do Conselho de Regulação e Desenvolvimento da Comunicação – que tem entre suas funções elaborar o informe vinculante para cessão ou autorização de concessões de frequências – que para algumas vozes críticas concentra demasiado poder no governo de turno (se bem que o executivo só nomeia a um dos cinco representantes).
Argumenta-se que o texto da Lei infringe convenções internacionais firmadas pelo Equador, o qual vislumbra possíveis ações ante os organismos internacionais se a lei for aprovada (ainda que de fato, em sua redação, tem tido o cuidado de respeitar as convenções vinculantes). A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) já qualifica de “preocupante” a Lei e é de se esperar que articulará uma campanha midiática regional para atacá-la, como se fez tantas vezes nos últimos anos, cada vez que algum dos governos tem tocado os interesses do poder comunicacional.
A última versão do projeto, publicado em 5 de abril, representa o fruto de mais de dois anos de audiências públicas, debates em meios, propostas e ações por parte de organizações e instâncias sociais, e diversas outras contribuições, que fazem com que esta lei seja uma das mais debatidas do país. Várias das propostas centrais, como a repartição igualitária de frequências, não provieram de setores oficialistas, mas de atores sociais. O governo tem mantido uma atitude ambígua frente à Lei, feito que impediu que se votasse dois anos atrás – como mandava a Constituição – quando o movimento político governante, Alianza PAIS, ainda tinha maioria na Assembleia. Em várias oportunidades o próprio presidente Rafael Correa reiterou que não é uma lei prioritária para o governo e, tanto no executivo como no PAIS há setores que se opõem à tese dos três terços na repartição de frequências. Foi somente no último mês de março que Correa expressou um claro respaldo a ela, o qual alinhou posições ao governo anterior.
Sem dúvida, o projeto tem vários erros e aspectos que poderiam ser melhorados. Por exemplo, a participação cidadã na gestão dos meios públicos não está muito clara, sendo um aspecto importante para garantir seu caráter público. Não obstante, com sua aprovação poderiam firmar as bases para uma reconfiguração e democratização profunda do cenário comunicação, atualmente dominado por uns poucos grupos de poder. Seguramente sua implementação não será um processo fácil. Assim como a repartição de terras, vai requerer processos de organização, proposta, criação de capacidades e luta, particularmente para consolidar o setor comunitário. Mas se conseguir esta primeira batalha, poderá contar com a legitimação das demandas e um campo de jogo mais igualitário.
Neste contexto, torna-se difícil entender que setores da oposição equatoriana mais identificados com a esquerda se alinham com as posições dos grandes meios comerciais e da direita. Sem dúvida, consideram que opor-se à lei é uma maneira de golpear ao governo, quando na verdade golpeiam ao movimento social que tem promovido a lei, e à população que se beneficiará dela; e de quebra, fazem um favor àqueles setores dentro do próprio governo, que não veem com bons olhos as medidas democratizadoras.
Se simpatiza ou não com um governo, não se pode renegar das próprias bandeiras históricas, quando este as adota como suas. Melhor começar a mobilizar mais intensamente e vigiar para que sua implementação seja efetiva. Se aprovado, não só beneficiará o país, mas servirá como um exemplo para o continente.
É com este sentido que a Rede de Intelectuais em Defesa da Humanidade tornou público seu apoio ao projeto de lei mediante uma carta aberta assinada, entre outros, por Ignacio Ramonet, Ana Esther Ceceña, Carmen Bohórquez, Marta Harnecker e Oscar Ugarteche, onde se afirma que é um projeto que “populariza o espectro radioelétrico equatoriano mediante uma redistribuição equitativa das frequências de rádio e televisão (…), elimina os monopólios, fomenta a produção nacional, promove a comunicação intercultural e plurinacional e garante a plena liberdade de expressão e informação”, e “será uma contribuição valiosa para a democratização das comunicações na Nossa América”.