Dairan Paul
Mestrando no POSJOR e pesquisador do objETHOS
A morte de Marisa Letícia Lula da Silva foi assunto recorrente na última semana. Não apenas por comover o país, ainda que gerando debates inflamados nas redes sociais, mas, também, por abrir espaço a outra discussão: a quebra do sigilo médico. Quando ainda estava internada, diagnósticos sobre o estado de saúde de Marisa vazaram por um grupo de Whatsapp de médicos. Inicialmente, espalhou-se que a ex-primeira-dama sofrera um AVC. Logo após, a informação foi desmentida quando surgiram imagens de seu exame de tomografia, o que foi posteriormente confirmado pela reumatologista Gabriela Munhoz.
O escândalo no vazamento das informações contraria frontalmente o artigo 73 do Código de Ética Médica, reservado ao sigilo médico, onde se lê que o profissional está impossibilitado de revelar quaisquer fatos sobre seus pacientes sem o seu consentimento. É possível que um médico troque idéias com seu colega sobre determinados casos clínicos; isto, contudo, somente pode ocorrer mediante autorização do paciente. Sílvio Eduardo Valente, presidente da comissão de direito médico da Ordem dos Advogados do Brasil, em São Paulo, explica que a quebra do sigilo “acontece com freqüência, mas o paciente acaba não sabendo ou, se sabe, não considera uma violação grave”. Para Valente, o caso de Marisa seria um “divisor de águas”, permitindo uma maior discussão da sociedade sobre a ética médica.
Por ocorrer com uma figura pública, em um momento delicado, o exemplo de Marisa chama a atenção e pode chocar os mais desavisados. Contudo, faz parte de um rol de outros casos que se enquadram dentro de duas discussões mais amplas: a proteção de dados pessoais e a transparência. Como pano de fundo dentro dessas questões, temos uma pergunta que perpassa dilemas éticos em algumas profissões e, com especial ênfase, o jornalismo: quais fatos devem ser levados a público? O que pode e o que não pode ser publicado?
Em relação à proteção de dados pessoais – que incluem documentos, informações sobre estado de saúde, vida conjugal, histórico de compras, conversas de foro íntimo –, cabe salientar que estamos falando de dois direitos análogos: o direito à privacidade e o direito à saúde. Com frequência, estes podem conflitar com o direito à informação; daí a criação de leis nacionais que busquem um equilíbrio entre as diversas tensões que estão em jogo.
O Brasil conta atualmente com três Projetos de Lei que buscam regular o tratamento de dados pessoais por empresas e órgãos públicos. Segundo uma recente análise conduzida pela ONG Artigo 19, o PL 5276/2016, de autoria do Ministério da Justiça, é o mais completo dentre os três Projetos (acesse o relatório para mais detalhes sobre a metodologia e os resultados obtidos). Ainda assim, o texto é impreciso em alguns pontos – como a questão do direito ao esquecimento, vagamente mencionada – e deve ser aprimorado futuramente.
Ao final do estudo feito pela ONG Artigo 19, constam alguns casos em que dados pessoais podem ser violados por terceiros. As ameaças não são tão evidentes como no exemplo de Marisa, em que a quebra do sigilo médico parece escancarada: temos também escutas telefônicas, Smart TVs que captam conversas, monitoramento de atividades via aplicativos de namoro e comercialização de dados obtidos por meio de jogos de celular, como Pokémon Go.
Sobre estes casos concretos, vale ressaltar também o trabalho jornalístico realizado pelo projeto Chupadados, que reúne histórias latino-americanas sobre coleta e processamento massivo de dados por governos e empresas. Algumas das reportagens postadas no site da entidade esclarecem que esses sistemas de vigilância comercializam dados a partir do monitoramento de cidades – como a gigantesca coleta feita no transporte público carioca – e até mesmo de corpos – o Menstruapp, por exemplo, é um aplicativo que regula ciclos menstruais e também informa padrões de comportamento.
A tensão que parece se consolidar nesses exemplos é a disputa por uma cultura de transparência mais eficaz que sinalize como esses dados são coletados, a partir de que momento e com quais finalidades. É preciso informar claramente ao usuário a necessidade do seu consentimento, as trocas que estão em jogo, os prós e contras – tudo isso para além de termos com letras minúsculas que raramente são lidos. Caso contrário, estamos falando de cooptação de dados.
Esse debate não está restrito somente a empresas de tecnologias: é de interesse do jornalismo que informações estejam disponíveis para o próprio processo de apuração das matérias. Este, contudo, é apenas um dos lados da moeda. E a instituição jornalística? Ela, acostumada a lidar com a privacidade alheia, a mexer com interesses diversos e, de certa forma, a “coletar” dados de terceiros para construir seus relatos estaria disposta a ser transparente em relação ao seu modus operandi?
O caminho para uma espécie de “ética da transparência” é apontada por alguns estudiosos já há algum tempo como futuro promissor para o fortalecimento do jornalismo (FRIEND & SINGER, 2007; PHILLIPS, 2010). Envolve abrir a “caixa preta” e afirmar “novos pactos” com sua audiência. Na prática, isso se concretizaria em deixar às claras a política interna da empresa jornalística, seus acionários e a quantia de verbas que recebe do governo. Diz respeito também a uma maior transparência em relação ao processo de apuração das reportagens, aspecto que detalharei adiante.
Contudo, transparência é uma palavra que, assim como “interesse público” e “objetividade”, possui significados variáveis, e não deixa de ser atravessada por relações de poder, interesses próprios e disputa de valores. A transparência não é um fim em si mesmo. Resta questionarmos: até que ponto é desejável sermos transparentes? Seria ela a solução para o jornalismo? E, aliás… qual é mesmo o significado de transparência?
Parece difícil refutarmos que práticas transparentes não possam contribuir para um jornalismo de qualidade, que pretenda reafirmar sua importância perante a audiência seja por atender a pressões do próprio público, seja por desmistificar, em alguma medida, a aura de objetividade que guia o discurso jornalístico. Por outro lado, o conceito de transparência parece ainda movediço, semelhante a outros como “interesse público”, salvaguarda de inúmeras práticas duvidosas. O que pretendo demonstrar no exemplo a seguir é que a transparência, paradoxalmente, também pode servir como argumento moral para atropelar os preceitos éticos do jornalismo.
Trump, Buzzfeed e a transparência às avessas
Ainda nas primeiras semanas de janeiro, antes de tomar posse, veio à tona um dossiê de 35 páginas sobre Donald Trump e suas possíveis relações com o governo russo, incluindo a existência de “material comprometedor” do presidente recém-eleito. Anunciado no final do ano passado pela CNN e pela revista Mother Jones, o documento, à época, não teve seu conteúdo revelado por ainda estar sob investigação da FBI. Entretanto, no começo de 2017, Buzzfeed publicou o dossiê na íntegra. O problema: seu conteúdo não era verificado.
Reações à decisão editorial do site não demoraram a surgir. Wikileaks, por exemplo, escreveu em sua conta no Twitter que não endossava a publicação de um documento “claramente falso”. Dean Baquet, editor-executivo do The New York Times, informou que não postaria o dossiê porque não poderia confirmar a veracidade do seu conteúdo. O mesmo foi dito por outros dois veículos, The Guardian e The Washington Post.
O dilema ético enfrentado pelo Buzzfeed também inspirou textos de analistas da mídia. Para Andrew Seaman, presidente do Comitê de Ética da Society of Professional Journalists, pode-se argumentar que a decisão do Buzzfeed colocaria fim nas especulações que se iniciaram com a CNN, primeiro veículo que reportou sobre a existência do documento. No entanto, Seaman reforça que os valores centrais do jornalismo ainda são preponderantes no debate: “mais do que nunca, jornalistas e redações precisam dizer ao público o que é e o que não é uma informação precisa”.
Já Vanessa Gezari, editora do Columbia Journalism Review, escreveu um surpreendente elogio à decisão do site. Para a autora, a abordagem de Buzzfeed foi diferente, mas convincente: publique o que você pode quando você tiver, e veja o que isso vai gerar de novidade na apuração do caso. Caso desse certo, o veículo teria um furo de notícia em mãos. Desnecessário sublinhar que o jornalismo não é uma corrida de cavalos em que ganha quem chega primeiro; o elogio de Gezari parece desprovido de qualquer senso de responsabilidade sobre as consequências que a decisão poderia repercutir. Mais adiante, o texto ainda questiona se repórteres verificaram antes de publicar em suas matérias as acusações contra Hillary Clinton feitas em e-mails vazados pelo Wikileaks. O trecho parece deixar claro o ímpeto político que tomou conta da análise, como se um erro de apuração justificasse o outro.
A chave para entendermos o caso, e que está ligada à questão da transparência que levantei anteriormente, reside na justificativa de Ben Smith, editor chefe do Buzzfeed. No mesmo dia em que foi publicado o dossiê, Smith postou no Twitter um memorando interno em que explica a sua decisão.
Smith reitera que não se tratou de uma decisão fácil, e que várias pessoas podem discordar dessa escolha. No entanto, publicar esse dossiê “reflete como nós vemos o trabalho dos repórteres em 2017”. O editor justifica que, pelo fato do documento já circular anteriormente nos bastidores da mídia, a presunção de ser “transparente” com seu jornalismo refletiria em “compartilhar o que temos com os nossos leitores. Sempre nos inclinamos para o lado de publicar”. Smith ainda arrebata que norte-americanos agora podem decidir por si mesmos sobre a veracidade das acusações contra Trump.
Ora, se a transparência é evocada por Smith como o futuro do jornalismo para 2017, a utilização que o editor faz do conceito esconde uma postura que não é novidade entre jornalistas. Já em 2007, Sylvia Moretzsohn criticava a ideia de que após o profissional disponibilizar as informações, o público poderia tirar as conclusões “por si”. A afirmação desconheceria, para a autora, quaisquer intenções e mediações discursivas no processo de construção da notícia, resultando em uma postura cínica do repórter, que não leva em conta as possíveis consequências de suas práticas. Evidentemente, o mesmo se aplica também à publicação de material bruto, como o dossiê, que pode ou não ser classificado como notícia. As consequências de sua postagem, ainda assim, são reais.
Transparência, nesse caso, parece muito mais próximo de um “ritual estratégico”, como já tratava a socióloga Gaye Tuchman sobre o conceito de objetividade, em 1972. Soa também como uma justificativa moral semelhante ao interesse público, guarda-chuva que pode abrigar interesses diversos. Ser transparente, no exemplo do Buzzfeed, remete a uma retórica que pode ultrapassar qualquer limite ético: pouco importa se o que se publica é verdadeiro ou falso, uma vez que qualquer pessoa pode tirar suas próprias conclusões. A decisão do veículo, amparada na transparência a serviço do leitor, que tem o “direito de saber”, está ligado historicamente ao ideário do jornalismo como quarto poder – portanto, um discurso que está “acima das contradições da sociedade, sem interesses a defender, capaz de falar em nome de todos” (MORETZSOHN, 2002, p. 56).
Um jornalismo transparente estreita seus laços com leitores. Não relega a eles que cumpra a sua própria função – a saber, checar os fatos. Transparência, no jornalismo, também significa admitir dúvidas e deixar claro os limites técnicos da profissão – o que tende a ocorrer com maior freqüência em coberturas ao vivo, quando o tempo dos acontecimentos se sobrepõe ao ritmo do jornalista. Não é o caso do dossiê de Buzzfeed: não se admitiu uma dúvida, mas, pelo contrário, plantou-se uma interrogação em um momento em que não era exigido que o documento viesse à tona. Tratou-se de uma decisão, no fim das contas, muito bem pensada por seu editor. No contexto norte-americano, não deixa de ser irônico que esta imprensa seja a mesma que recentemente declarou guerra à proliferação de notícias falsas.
Referências bibliográficas
FRIEND, C.; SINGER, J. (eds). Online Journalism Ethics: traditions and transitions. New York, London: M. E. Sharpe, 2007.
MORETZSOHN, S. Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
MORETZSOHN, S. Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
PHILLIPS, A. Transparency and the New Ethics of Journalism. Journalism Practice, 4(3), pp. 373-382, 2010. Disponível em: bit.ly/2kd7PBe.