Ricardo José Torres
Mestrando em Jornalismo no POSJOR e pesquisador do objETHOS
A exatidão, a verossimilhança, o interesse público e o esclarecimento estão ligados ao êxito das atividades jornalísticas. Esse conjunto de pressupostos está ancorado em regras e em modos de fazer que devem orientar as ações práticas. Regularmente, ações jornalísticas oferecem casos exemplares que demonstram a importância da inserção do bom senso na intenção jornalística. Recentemente, o Portal Catarinas, um espaço emergente de jornalismo que trabalha temas de gênero, feminismo e direitos da mulher, e constitui-se como em um observatório da mídia catarinense, evidenciou a negligência da RBS TV, afiliada da Rede Globo em Santa Catarina. Orientado por ações aéticas e irresponsáveis, o quadro do colunista Cacau Menezes, no Jornal do Almoço, usou imagens da Marcha das Vadias para ilustrar uma nota sobre a Marcha da Maconha.
Além de confundir manifestações de caráter e causas distintas, o caso apresenta, ao menos, mais duas situações absurdas. Conforme o Portal Catarinas, em novembro de 2013, Cacau Menezes divulgou uma nota contendo imagens sobre a Marcha da Maconha, porém com imagens da Marcha das Vadias, realizada em 2011. Tal vídeo, por determinação da justiça, foi retirado do site três meses depois. Porém, em 1 de junho deste ano, 2016, o material foi exibido novamente, na mesma situação. Na imagem, Ângela Medeiros, ativista do movimento das mulheres negras e estudante de psicologia, aparece no vídeo com o filho de um ano no colo.
Incomodada com o equívoco, Ângela, ainda em 2013, acionou a justiça: “eles (representantes da RBS) alegaram que se eu estava na Marcha das Vadias poderia estar em qualquer outra. Não sou usuária de maconha e nem participaria desta marcha. Como exibir a minha imagem, segurando meu filho bebê no colo, em uma manifestação da qual não participo?”, informou ao Portal Catarinas.
A repetição do erro e consequente exposição da denunciante, denota uma falta de percepção política reiterada pela imprensa, que menospreza fenômenos sociais importantes e a emergência de diferentes grupos da sociedade civil que estão experimentando formas alternativas de identificação e diferenciação política. “Esses grupos vêm demandando crescente reconhecimento social e legal e a formulação de políticas públicas mais favoráveis” (MAIA, p. 97).
Conforme a autora, uma multiplicidade de grupos abraçam certas causas e dizem representar e agir em nome de outros, exercendo um papel fundamental na política democrática. “Para nossos propósitos, interessa destacar que porta-vozes de associações voluntárias, líderes de movimentos sociais e empreendedores morais são particularmente capacitados para politizar a esfera social e trazer a pluralidade e a diferença a público” (p. 101). Em pesquisas recentes diagnosticamos que as informações provenientes de movimentos sociais não são percebidas como ações ligadas ao campo político pelo “jornalismo tradicional”. Trata-se da política realizada fora dos gabinetes e centros de poder, é algo que transcende às práticas convencionadas e chama a atenção para a necessidade de reavaliarmos quais são os temas políticos presentes na sociedade e nos registros jornalísticos.
Em nossos estudos percebemos que os fatos políticos ressaltados pelas convenções jornalísticas hegemônicas são tão importantes quanto os que elas omitem. A finalidade jornalística se exprime nas intenções expressas pelas informações, nas consequências refletidas pelo conteúdo entregue e no impacto social verdadeiro e consistente. Na contramão desse ideal estão os textos jornalísticos oriundos de práticas negligentes, orientados por interesses “obscuros” não manifestados, que denotam despreocupação com a ética por meio de informações imprecisas. No Portal Catarinas, o presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, Aderbal Filho, ratificou os erros irreparáveis cometidos pela RBS TV. “Além de não reconhecer o erro e recorrer da decisão, ainda reincidiu ao reutilizar a imagem de uma manifestação pública com uma determinada finalidade para referir-se a outra, de finalidade distinta. O mínimo que se poderia esperar, já que a RBS sabia que uma pessoa havia se declarado prejudicada, era respeito. Não dá para defender o indefensável”.
Os fatores elencados indicam a importância do contraponto oferecido por meios alternativos, especialmente em meios digitais, questionando a “tradição” que legitima informações ilegítimas e oferece conteúdos de baixa qualidade, apoiados em supostas prerrogativas do jornalismo. Atualmente, o conteúdo jornalístico está permanentemente sob julgamento, os interesses estão ficando mais evidentes e a isonomia no tratamento dessas temáticas não pode ser só mais um discurso retórico, mas uma ação permanente, contínua e honesta.
O “jornalista celebridade” e a desinformação
Na perspectiva de Dader (2014), o engajamento do jornalista deve ser norteado pelos princípios jornalísticos e seus interesses podem coincidir temporariamente com o de qualquer outro setor. Nesse sentido, as contribuições e reações dos movimentos sociais têm que ser levadas em conta por jornalistas profissionais e devem penetrar no discurso jornalístico central, mas sem mais ou menos privilégios do que o restante dos conteúdos. “Pela minha parte me aventuro a propor a seguinte definição de Jornalismo: Consiste no método de processamento de informações que combina recolha, verificação, síntese e esclarecimento de fatos e opiniões credenciadas como relevantes e verdadeiras, com o máximo de precisão possível, para servir desinteressadamente aos cidadãos, em sua necessidade de um monitoramento preciso da atualidade social potencialmente capaz de afetar suas vidas” (2009, p.166).
Serão critérios profissionais que irão garantir o papel de intermediário do jornalismo. Resultado de um trabalho exigente e rigoroso, o serviço assim executado será democrático pela maneira que é exercido, e não pelas causas com que os profissionais se identifiquem. “A peculiaridade do verdadeiro serviço democrático do jornalismo não é escolher as questões mais benevolentes ou mais carregadas de razões, mas permanecer distante e independente, aplicando os seus critérios profissionais de precisão, contraste e relevância guiado pelo interesse público” (p. 654). Na prática, esses são desafios permanentes conexos ao exercício dessa atividade. Os novos movimentos e modelos experimentais, desenvolvidos em torno de causas políticas específicas, contrastam com as práticas dos veículos de comunicação tradicionais, estes apresentam aspectos que remetem à continuidade dos padrões estabelecidos.
Os movimentos sociais subversivos disseminam informações políticas que, de uma forma geral, passam despercebidas pela cobertura jornalística convencional ou são remanejados e abordados como temáticas descoladas do ambiente político ao qual a sociedade civil está envolvida. A partir da estruturação, abordagem e dos enquadres predominantes dos meios tradicionais, há um claro tensionamento e, na maioria dos casos, uma tentativa de apagamento dos temas políticos que estão emergindo das margens do tecido social e sendo amplificados por grupos alternativos.
Após a realização de análises e trabalhos acadêmicos relacionados a essas temáticas, constatamos que uma parte significativa da atividade jornalística “tradicional”, particularmente o jornalismo opinativo, enfrenta um vazio de intelecto e humildade. O pedestal criado pelas convenções jornalísticas concedeu notoriedade para opiniões simplificadas, que beiram a estupidez e se aproximam de um universo hipócrita de superioridade. Afirmações vazias recorrentes embaralham entendimentos básicos de cidadania. No espaço onde a estupidez é ovacionada a coerência acaba sendo desprezada pelo ímpeto da certeza obsoleta e destrutiva. Esses fatores corroboram para o apagamento de valores e da integridade relacionados à multiplicidade de ideais e interesses. Não basta insinuar o que são valores jornalísticos. Sem bases o texto jornalístico torna-se apenas interesse e a democracia e seus valores fundamentais apenas um álibi para acentuar as desigualdades e criar um universo de conformidade e sujeição.
Referências
DADER, José Luis. El periodista, entre el Poder. Revista Latina de Comunicación Social. p. 637-660. 2014. Disponível em: http://migre.me/rEu8Z. Acesso em: 07 jun. 2016.
DADER, José Luis. Periodismo en la hipermodernidad: consecuencias cívicas de una identidad débil (y algunas vías de reconstrucción). Textual & Visual Media. v.2, p. 147-170. 2009. Disponível em: http://migre.me/rInwQ. Acesso em: 07 jun. 2016.
MAIA, Rousiley. Representação política de atores cívicos: Entre a imediaticidade da experiência e discursos de justificação. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 27. n° 78. fev. 2012. p. 97-193. Disponível em: http://migre.me/sBBuC. Acesso em: 07 jun. 2016.
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