Francisco José Castilhos Karam*
A resistência e a insurreição populares sempre marcaram a história da Humanidade desde a Grécia e Roma Antigas. Continuaram nos processos da Inquisição – em que somente na Alemanha mais de 100 mil mulheres foram para a fogueira entre os séculos 1450 e 1550, ao resistir e lutar contra a injustiça, os preconceitos, o dogmatismo (Russell: 1977). Ou por simplesmente não seguir a cartilha do poder divino representado pelos duvidosos valores dos deuses de então e seus “representantes” na Terra, hoje reconhecidamente facínoras até mesmo pelo Vaticano. Tão facínoras como grande parte dos deputados federais que invocaram a divindade para votar, em 17 de abril de 2016, pelo golpe contra a presidente Dilma Rousseff.
A resistência argumentativa e armada percorreu os séculos, passando pela Revolução Francesa, Independência Americana e os processos nacionalistas que marcaram as lutas independentistas na América Latina – entre elas a independência do Brasil e a passagem do Império à República em vários países -, além de milhares de outros exemplos históricos. Se considerarmos, por exemplo, a resistência na Segunda Guerra Mundial, seriam “sabotadores” os resistentes ao nazismo? A implantação do fascismo na Itália e do Nazismo na Alemanha sempre teve resistência argumentativa e pelas armas. Seriam “sabotadores” os resistentes ao golpe militar de 1964 no Brasil? Ou a resistência ao golpe seria a resistência a um modelo de perseguição e extermínio? E “sabotagem” seria atrapalhar o modelo de sociedade proposto por Adolph Hitler, por Augusto Pinochet, pelo general Videla, pelo torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra?
Contra a vida organizada e segura para poucos e a miséria e extermínio para muitos, resistir a golpes tem sido um ato digno e, muitas vezes, heroico, ao longo da história humana.
O processo de resistência – e de mudança social para melhor – faz parte da luta pela liberdade. O que se vê no Brasil, com a tentativa de golpe, é uma mudança para pior, em benefício de uma elite sempre privilegiada e contra um conjunto de pessoas que sempre fica à margem das conquistas sociais naquilo que tem de melhor: programas que incluem socialmente através da educação, saúde, moradia, cultura…
A revista ISTOÉ e a sabotagem do jornalismo e da vida digna
A capa da ISTOÉ, com acesso online à capa e matéria (edição 2421, de 29 de abril de 2016) com o título de “Sabotadores do Brasil”, trazendo a imagem da presidenta Dilma, do ex-presidente Lula e do líder João Pedro Stédile como criadores do caos, é uma peça que homenageia a submissão a golpes e a não resistência. Homenageia o fim da democracia. O resultado final, na cobertura de Política, coloca a revista no epicentro do golpe e do interesse político-comercial para que prospere não o País, mas seus próprios interesses e negócios.
A matéria “Eles querem sabotar o Brasil”, assinada por Marcelo Rocha (e editada sabe-se lá por quem…), é coerente com a tradição antiética da revista nos últimos anos (exceção aos jornalistas que lutam ali dentro para fazer o melhor possível). Isso vem ocorrendo desde quando Luiz Claudio Cunha publicou, quando fazia parte do veículo – e indignado com a postura da direção editorial – um conjunto de decisões antiéticas e que afrontavam as regras elementares do jornalismo. Em ”Como a Istoé tornou-se IstoEra”, publicada como carta no Observatório da Imprensa no dia 28/03/2006, Luiz Cláudio escancarou as tramoias, as falsas montagens de fatos e fotos, as imprecisões, a falta de ética e a abundância de conservadorismo na revista. O texto era dirigido ao então chefe, Carlos José Marques, que hoje ainda está lá. É Diretor Editorial. Veja o esclarecedor artigo de Luiz Cláudio Cunha em:http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/como-a-istoe-tornouse-istoera/
Pois bem. Agora, a matéria de capa da última edição, escrita pela lógica dos golpistas, tenta inverter o papel de algozes para o de vítimas:
Eles querem sabotar o Brasil
Orientados pela presidente Dilma Rousseff e por Lula, movimentos sustentados pelo governo infernizam o País, enquanto o Planalto faz o diabo para tentar inviabilizar a futura gestão de Michel Temer”
Trata-se do contrário. Quem inferniza o país e inviabiliza programas sociais é Michel Temer, Eduardo Cunha, Aécio Neves, José Serra, Rede Globo, Veja, Istoé (que não se sabe por que chama a si própria de Istoé independente), CBN e outros veículos hegemônicos, cujos colunistas e muitos repórteres, no mais das vezes, assassinam fatos e os interpretam à luz dos interesses meramente particulares, antinacionais e antipopulares. Não aceitam o voto de mais de 54 milhões de eleitores brasileiros.
Sob a argumentação frágil de que há ingovernabilidade, de que houve mentira para chegar à vitória, de que existe infração às regras jurídicas administrativas – embora as ações de Dilma tenham tido o aval de Michel Temer e não caracterizem crime de responsabilidade –, tais políticos, empresários e parte da mídia forjaram um golpe. Tal atitude leviana, conhecida planetariamente como “golpe branco”, vem embalada pelo interesse particular no pré-sal, pela derrubada de direitos trabalhistas e conquistas sociais, pela privatização do que resta e que ainda não foi dilapidado na era Fernando Henrique Cardoso e sua turma.
Escreve o repórter, usando a velha tática de inverter discursos e apresentar vítimas como algozes:
A tática é velha, surrada e remete a Roma antiga. Tal como o imperador Nero fez com a capital ocidental do Império, para depois atribuir a culpa aos cristãos, o PT pôs em marcha, nos últimos dias, o que internamente chamou de ‘política de terra arrasada’. Orientados pelo ex-presidente Lula, com o beneplácito da presidente Dilma Rousseff, e inflamado por movimentos bancados pelo governo, o partido resolveu tocar fogo no País – no sentido figurado e literal.
Mas quem disse que a administração pública sob o comando de Dilma Rousseff deveria sangrar até a morte foi, logo após a eleição, o senador Aloysio Ferreira, do PSDB, um dos principais sabotadores do Brasil. E que agora quer fazer seu partido chegar ao poder, com o sempre oportunista PMDB, sem ter sido eleito para governar a Nação. Quando se trata de sabotar o país à direita, é legítimo. Quando os eleitos resistem, é sabotar. A defesa popular do governo é também a defesa da democracia, do voto, do respeito às regras do jogo. Quem se propôs a tocar fogo no País foram os derrotados nas urnas em 2014, incluindo a grande mídia, que tem estimulado sistematicamente o ódio e o caos.
Quem de fato sabota o Brasil?
Quem sabota o Brasil são aqueles que querem privatizar o pré-sal, tendo como um dos principais expoentes o senador José Serra que, no momento em que o país se encaminhava para ser uma nova potência no grupo dos BRICS e possibilitaria nova redefinição na economia mundial, encaminhou a entrega internacional daquilo que seria um dos maiores recursos da história do país em termos econômicos.
Quem sabota o Brasil são aqueles que iniciaram o processo de corrupção continuada da Petrobras, desde ao menos os dois governos de Fernando Henrique Cardoso, e que agora, se destituída a presidenta, enterrarão de vez operações como Lava Jato e Zelotes, apanhando um ou outro aqui e ali, para despistar. Na lista dos corruptos históricos estão os que desviaram dinheiro da Transamazônica durante o regime militar; as empreiteiras que construíram as estradas asfaltadas no Brasil; os empresários – inclusive da mídia – que em troca de apoio ao regime militar e, até mesmo, às torturas, cresceram beneficiados pelo regime autoritário; o governo FHC, período em que modernamente se profissionalizou a propina.
Quem sabota o Brasil é a articulação entre despreparados parlamentares, judiciário conivente, investigação e denúncias seletivas e mídia golpista (que pensa apenas nos seus interesses e negócios).
Quem sabota o Brasil são empresários, ligados ou não à FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), que aderiram a um golpe orquestrado para desestabilizar o país no cenário internacional, a Petrobras e as empresas nacionais para depois tentar “reconstruir” a Nação e as empresas à base de seus interesses particulares.
Quem sabota o Brasil são jornalistas submissos e coniventes, a mando de empresários, que escondem fatos e dados e tornam a profissão o ápice do cinismo e o auge da opinião alugada.
Quem sabota o Brasil são os que agora querem destruir programas como oMinha casa Minha vida, as Universidades e as inúmeras conquistas sociais e trabalhistas.
A resistência de Dilma Rousseff, de João Pedro Stédile, de Lula, de tantos líderes sindicais e de movimentos sociais, de estudantes e intelectuais, estão no centro da defesa de um Brasil mais igualitário – e não elitista-, de um Brasil grande e não “de bananas”, de um Brasil capaz de competir no cenário internacional. Basta vermos os dados dos governos Lula e Dilma e compará-los aos de FHC. A elite e a mídia elitista concentrada nela não aceitam e partem para o “vale-tudo”, para a destruição do governo eleito – e os erros deste não justificam o golpe. Não encontrando respaldo jurídico,inventam um “respaldo jurídico”.
Há enorme legitimidade moral, política e jurídica para inviabilizar o golpe a caminho, e parece que o único caminho a seguir é o da resistência popular, ainda que seja demonizada pelos golpistas, incluídos grande parte da mídia hegemônica, do Judiciário e do Parlamento.
Como mostrou a postura da maioria dos deputados a favor do golpe, em 17 de abril, cresce a importância dos movimentos sociais e populares com perspectiva libertadora, democrática e igualitária. Parlamentares, pagos por empresas afiliadas à FIESP, transportados por jatos particulares, vinculados a meros interesses mercadológicos, familiares ou religiosos – e em nada pensando no País como Nação – protagonizaram uma cena tão épica como vergonhosa aos olhos dos mais lúcidos brasileiros e do cenário internacional democrático. E note-se que a FIESP e empresas a ela afiliadas recebem incentivos do governo federal, ou seja, verba pública do meu bolso, do seu bolso.
O jornalismo da ISTOÉ e de tantos outros veículos ainda considera que sua narrativa reflete a legitimidade social do golpe em curso, quando reflete apenas a ilegitimidade que se tenta legalizar por meio da quebra das regras do jogo. A seguir assim, tais regras podem ser derrubadas a qualquer momento, em qualquer governo federal, estadual ou municipal. Bastam as “verdades” convenientes da ocasião, fabricadas por narrativas como a daISTOÉ. É por isso que os movimentos populares vão às ruas. Quando se trata de golpes, parece não haver outro caminho.
Referência
RUSSELL, Bertrand. Ética e Política na Sociedade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
Professor de Jornalismo na UFSC e pesquisador do objETHOS