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Por que os Direitos Humanos são fundamentais à formação jornalística?

Doutora em Jornalismo pelo PPGJOR/UFSC; pesquisadora do INCT.DD e professora substituta da FACOM/UFBA

Diversas pesquisas sobre os efeitos da mídia indicam que o jornalismo não determina diretamente o que as pessoas pensam, mas influencia profundamente sobre o que elas pensam. Essa premissa, consagrada pela teoria da agenda-setting, demonstra que os meios de comunicação exercem um papel decisivo na definição dos temas que ganham centralidade no debate público (McCombs, 2009). Ao destacar determinados assuntos em detrimento de outros, o fazer jornalístico contribui para a definição da agenda pública e, com isso, reforça sua relevância como mediador simbólico da realidade.

Ao decidir quais questões merecem relevância, o jornalismo exerce uma função central de seleção e hierarquização da realidade, atuando como uma espécie de curadoria do mundo social. Nesse processo, opera como um filtro simbólico, definindo o que será amplificado ou silenciado na esfera pública. Essa capacidade de organizar a atenção coletiva — sobretudo em temas sensíveis como os direitos humanos — torna a imprensa uma arena estratégica no jogo de visibilidade x invisibilidade de fenômenos e de populações marginalizadas/vulnerabilizadas.

As reflexões aqui apresentadas visam contribuir para o campo de estudos sobre jornalismo e direitos humanos, oferecendo uma análise das práticas jornalísticas contemporâneas e sugerindo caminhos para uma atuação mais ética e responsável dos meios de comunicação na construção de narrativas que promovam os direitos e a dignidade humana. Especialmente em um momento de grandes desafios globais, é preciso pensar a construção de uma cultura de promoção dos direitos humanos.

A escolha editorial de pautas, fontes e enquadramentos pode, portanto, contribuir para reforçar desigualdades ou, ao contrário, promover transformações, dependendo do compromisso ético de quem produz a informação jornalística. Ao selecionar quais pautas serão cobertas, quais vozes serão ouvidas e como os fatos serão apresentados ao público, profissionais e veículos tomam decisões e fazem escolhas editoriais que atuam na realidade social percebida. O modo como uma pauta é abordada — seu enquadramento (framing) — influencia o imaginário social em torno daquela temática. Um mesmo evento, como um protesto, pode ser representado de formas radicalmente distintas — ora como “desordem pública”, ora como “ato legítimo de resistência” — a depender do enquadramento jornalístico adotado.

Os direitos humanos são fruto de uma construção histórica progressiva, marcada por lutas sociais e transformações políticas, como destaca Norberto Bobbio (2022). No pós-guerra, como resposta às atrocidades cometidas durante o nazismo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, representa um marco importante dessa trajetória ao adotar uma perspectiva universalista. No entanto, conforme argumenta Herrera Flores (2009), é fundamental compreender os direitos humanos de forma complexa, reconhecendo-os como um campo em permanente disputa, atravessado por práticas de resistência. Longe de constituírem um conjunto acabado ou definitivo, os direitos são produzidos historicamente, em etapas sucessivas, a partir de embates sociais e avanços políticos. Nesse processo, a imprensa assume um papel estratégico ao dar visibilidade às demandas por dignidade e justiça — podendo atuar de maneira ambígua: como aliada na consolidação desses marcos civilizatórios ou, ao contrário, como agente de silenciamento e negação de direitos.

Frente a movimentos como a crescente radicalização na política, a crise de refugiados, a escalada da violência policial e o aumento de movimentos populistas, a narrativa jornalística assume um importante papel na formação da opinião pública e no imaginário sobre direitos humanos. No entanto, a cobertura muitas vezes reforça estereótipos, marginaliza grupos vulneráveis e contribui para preconceitos. A proposta aqui busca oferecer uma reflexão abrangente, pensando as possíveis formas de exercício jornalístico que promovam a justiça social e a dignidade humana, essência da DUDH.

Cabe, portanto, pensar o lugar do jornalismo em uma sociedade marcada por profundos abismos sociais, como a brasileira, implicando reconhecer que essas feridas históricas limitam o pleno exercício das potencialidades desta atividade (Moser, 2024). Nesse contexto, desigualdades históricas e estruturais moldaram um sistema de exclusões múltiplas. Pensar a formação jornalística à luz dos direitos humanos é enfrentar esse legado. É reconhecer que não se pode formar jornalistas apenas com competências técnicas e narrativas desvinculadas da realidade social em que atuam. Trata-se de formar profissionais capazes de questionar estruturas opressoras, visibilizar vozes silenciadas e atuar com responsabilidade ética diante das múltiplas formas de injustiça.

Requer aqui refletir sobre o potencial subversivo do jornalismo como arena pública de debate, ao dar evidência às populações historicamente marginalizadas, denunciar violações de direitos humanos e desafiar os discursos dominantes ou oficiais. É importante também examinar como a agenda de direitos humanos é abordada por diferentes mídias, incluindo a imprensa tradicional e iniciativas que se posicionam fora do mainstream, e as implicações disso para a percepção pública e as políticas públicas.

Além de atuar na construção da agenda pública, o jornalismo também tem uma relação histórica e umbilical com a democracia. Quando temas sociais — como desigualdade, pobreza, racismo, acesso à saúde, moradia e educação — são tratados como periféricos ou secundários, o jornalismo deixa de cumprir sua função de dar visibilidade a temas de interesse público e de cobrar políticas públicas que promovam justiça social.

Pesquisa desenvolvida pelo grupo de estudos Jornalismo e Direitos Humanos (DHJor) da Universidade Federal de Santa Catarina levantou que a inclusão dos direitos humanos nos currículos, a partir das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) implantadas em 2013, ocorre de maneira gradativa, ainda incipiente e majoritariamente transversal.

“Ao realizar uma sondagem a projetos pedagógicos e grades curriculares de dez universidades públicas que oferecem cursos de graduação em Jornalismo, em todas as regiões do país, verificamos que a maioria cumpre a recomendação das DCNs com os teores de Cidadania e DH de maneira transversal. Dois cursos dispõem de disciplina específica, ofertadas em caráter optativo; e apenas uma universidade traz em seu currículo os DH como disciplina obrigatória” (Ijuim et al, 2023).

Em recente contribuição (ainda não publicada), o grupo enfatiza que a noção sobre DH deve atravessar os fazeres jornalísticos: “A experiência do Grupo de Estudos Jornalismo e Direitos Humanos (DHJor) do PPGJor/UFSC mostra que os direitos humanos não podem estar restritos a uma editoria específica ou a edições especiais, mas deve perpassar qualquer pauta. Moradia, saúde, educação, segurança pública, trabalho e emprego, segurança alimentar, economia, política, cultura e esportes são passíveis de violações e, por isso mesmo, envolvem direitos humanos. A consciência desta responsabilidade exige conhecimento – e reconhecimento – das conquistas históricas” (Ijuim et al, 2025 – no prelo).

Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a disciplina Jornalismo e Direitos Humanos é ofertada pela primeira vez este semestre, como disciplina optativa, representando um passo significativo rumo à institucionalização desse eixo formativo. Tenho a responsabilidade de conduzir essa experiência inaugural, que se configura não apenas como uma oportunidade pedagógica, mas como um compromisso ético com a construção de um jornalismo mais consciente e socialmente comprometido. Trata-se também de um desafio, considerando a diversidade de perfis entre as/os estudantes matriculadas/os na disciplina, muitas/os das/os quais vêm de outros cursos, com interesses variados e, por vezes, com uma compreensão distorcida do que é o jornalismo.

Responsabilidades e competências do jornalismo

Relacionar o estudo de direitos humanos ao jornalismo, no contexto brasileiro, é essencial para compreender e enfrentar as desigualdades estruturais e a exclusão social que marcam a história e o presente do país. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Estamos em terceiro lugar entre os países com maior desigualdade entre 56 nações, atrás apenas de Rússia e África do Sul. Ocupamos o 89º lugar no ranking de desenvolvimento humano, em relatório mais recente divulgado pelas Nações Unidas que reúne a condição de 193 países. Tal estudo coloca a realidade brasileira atrás do Chile (44º lugar), Argentina (48º) e Uruguai (52º), para citar apenas países da América do Sul.

Essa desigualdade se manifesta em múltiplas dimensões: econômica, racial, territorial, de acesso à educação, saúde, segurança e justiça, inclusive por dimensões regionais. Para citar apenas um exemplo, o Distrito Federal tem a maior expectativa de vida do Brasil (79,7 anos), seguido de Santa Catarina (78,3 anos) enquanto Roraima e Amapá apresentam os menores índices em 2024 (74,3 anos).

O jornalismo deve tratar a expectativa de vida desigual entre regiões – e às vezes dentro dos próprios municípios, a depender dos bairros em comparação – como um sintoma de injustiças profundas e não apenas como curiosidade estatística. Afinal, o jornalismo não opera em uma realidade homogênea ou consensual, mas em um cenário repleto de ambivalências, tensões e paradoxos. São justamente essas contradições — entre discurso e prática, progresso e exclusão, liberdade e controle, direitos e violações — que geram os conflitos e os acontecimentos que demandam atenção jornalística. Ao se nutrir dessas fissuras, o jornalismo cumpre sua função de mediação, expondo os contrastes que estruturam a vida cotidiana e oferecendo à sociedade instrumentos para compreender e, eventualmente, transformar essas realidades.

Os meios de comunicação têm um papel crucial não apenas ao divulgar as violações de direitos, mas também ao informar de maneira qualificada e educar o público sobre a importância desses direitos. A prática jornalística pode, assim, ser agente de difusão das ideias, ajudando a ampliar a conscientização sobre direitos e cidadania, além de atuar como vigilante dos abusos.

Afinal, a ênfase nas emoções e na empatia se constituem como parte da construção dos direitos humanos. Os romances do século XVIII tiveram um papel central na disseminação de uma nova sensibilidade moral que viria a sustentar a ideia de direitos universais (Hunt, 2009). Ao acompanhar personagens fictícios — mas descritos com profundidade emocional, complexidade psicológica e vidas semelhantes às do leitor comum — o público era convidado a se identificar com seus sofrimentos, desejos e dilemas cotidianos. Essa identificação, ainda que mediada pela ficção, gerou um sentimento de proximidade com “o outro” contribuindo para a formação de uma consciência moral que reconhece a dignidade e os direitos de todo ser humano.

Historicamente, os direitos humanos se tornaram um conceito mais acessível ao público ocidental porque as narrativas sobre sofrimento humano e injustiça social despertaram uma resposta emocional. Para o jornalismo, isso sugere que a cobertura de direitos humanos pode ser mais eficaz quando as histórias são contadas de maneira a gerar empatia, humanizando as vítimas de violações de direitos e criando uma conexão emocional com o público. Tal abordagem pode ser um poderoso instrumento de mobilização social. No entanto, exige rigor ético: não deve jamais escorregar para o sensacionalismo — um desvio da prática jornalística que compromete a dignidade das vítimas.

Cenário de desafios

Em um cenário global marcado pelo avanço de governos autoritários, pelo agravamento das desigualdades e pelo enfraquecimento de instituições democráticas, os direitos humanos são ameaçados de forma alarmante. Nesse contexto, o jornalismo assume uma função vital: tornar visível o que é silenciado e denunciar injustiças. A inclusão de vozes historicamente excluídas está no cerne dos Direitos Humanos. Uma cobertura jornalística comprometida com essa perspectiva contribui para um debate público mais democrático.

O cenário se complica à medida que, no Brasil, jornalistas também têm sido expostos frequentemente a violações dos direitos humanos quando enfrentam assédio moral, censura, ameaças e violência por exercerem sua função (Barros, Nicoletti e Lima, 2023). A vigilância constante e a coação institucional comprometem sua liberdade de expressão e de imprensa. Esses ataques não afetam apenas os profissionais, mas fragilizam a democracia e o direito da sociedade à informação. Cabe pensar de que maneira jornalistas podem aperfeiçoar a cobertura sobre direitos humanos se eles mesmos estão sujeitos a violações, das mais variadas formas.

Em um país como o Brasil, onde noções de rejeição aos direitos humanos persistem, como as ideias disseminadas pelo senso comum de que “direitos humanos são direitos de bandidos” ou “direitos humanos para humanos direitos”, os desafios parecerem ser ainda maiores. No país, apenas depois do período mais duro do regime militar começou-se a estabelecer a ideia de que todos os seres humanos são dignos dos direitos fundamentais (Vivarta, 2006; Canela, 2008).

Nesse contexto, a atuação de parte da mídia tem contribuído para reforçar visões distorcidas sobre o tema. Programas sensacionalistas, que exploram tragédias, violência e sofrimento de forma espetacularizada, visando audiência e lucro, e não o interesse público, podem ser considerados uma forma de pseudojornalismo. Ao fazerem isso, desinformam ou simplificam temas que exigem abordagem responsável e complexa, pois resultam de questões multifatoriais — como segurança pública e pobreza, por exemplo. Ao se afastarem dos princípios éticos e metodológicos do jornalismo profissional — como a verificação rigorosa, o compromisso com a veracidade dos fatos, o equilíbrio na cobertura e o respeito à dignidade das pessoas envolvidas – deixam de cumprir com as finalidades esperadas da profissão.

Tais programas costumam reforçar visões maniqueístas e moralistas da sociedade, apresentando “bandidos versus mocinhos”, julgando sumariamente pessoas e incentivando soluções punitivistas, muitas vezes contrárias aos direitos humanos. Embora usem linguagem, recursos e formato jornalístico (repórter de rua, microfone, “ao vivo”), o conteúdo se afasta dos critérios da profissão. Nesse caso, falamos de pseudojornalismo: uma simulação de jornalismo que mantém aparência formal, mas não segue seus fundamentos.

A incorporação da cobertura jornalística sobre direitos humanos enfrenta diversos obstáculos. Muitos jornalistas não têm formação sólida sobre o que são os direitos humanos, sua historicidade e os instrumentos legais que os regem (Montipó; Ijuim, 2021). A lógica mercadológica das redações, somada à precarização do ambiente profissional, também limita o espaço para tais abordagens, frequentemente criminalizadas ou marginalizadas. Diante desses desafios, formar jornalistas com sensibilidade e preparo para reconhecer e noticiar violações de direitos é uma tarefa inadiável. Afinal, um jornalismo comprometido com os direitos humanos é também um jornalismo comprometido com a própria democracia.

Referências

BARROS, Janaina Visibeli; NICOLETTI, Janara; LIMA, Samuel Pantoja. O trabalho de jornalistas no Brasil: Desigualdades, Identidades e Precariedades. Florianópolis, SC : Editora Insular, 2023, p. 40-59.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: GEN | Grupo Editorial Nacional e Editora Atlas, 2022.

CANELA, Guilherme (Org.). Políticas públicas sociais e os desafios para o jornalismo. São Paulo: Cortez; Andi, 2008.

HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

IJUIM, Jorge Kanehide et al. Jornalismo e Direitos Humanos: Reflexões sobre/para a formação profissional. Intercom, 2023.

McCOMBS, Maxwell. A teoria da agenda: a mídia e a opinião pública. Petrópolis: Vozes, 2009.

MOSER, Magali. O método da reportagem. Um estudo a partir de depoimentos de repórteres especiais. Cachoeirinha/Brasília : Fi/Editora SBPJor Luiz Gonzaga Motta, 2024. Disponível em: O método da reportagem: um estudo a partir de depoimentos de repórteres especiais • Editora Fi • Acesso Aberto Acesso em 5 mai, 2025.

MONTIPÓ, Criselli.; IJUIM, Jorge Kanehide. Desafios na cobertura de cidadania e direitos humanos no Brasil: relatos de repórteres sobre censura e autocensura. In: Nara Lya Cabral Scabin; Andrea Limberto Leite. (Org.). Comunicação, Mídias e Liberdade de Expressão no século XXI: modos censórios, resistências e debates emergentes. 1aed.São Paulo: Intercom e Gênio Editorial, 2021, p. 264-289. Disponível em: https://portalintercom.org.br/uploads/wysiwyg/comunicacao-midias-e-liberdade-de-expressa no-seculo-xxi.pdf Acesso em 5 mai, 2025.

VIVARTA, Veet. Mídia & Direitos Humanos. Brasília: ANDI, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, UNESCO, 2006.

 

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