Leonel Camasão*
A divulgação de centenas de documentos obtidos pela Polícia Federal na 23ª fase da Operação Lava Jato amplificou a instabilidade política no país. O “listão da Odebrecht” se espalhou pela internet em velocidade muito superior a canetada do juiz Sérgio Moro, que decretou sigilo dos documentos e pretende remetê-los nesta segunda ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os arquivos foram disponibilizados na íntegra no Blog do Fernando Rodrigues, do UOL, em 23 de março. O texto afirmava que “Documentos apreendidos pela Polícia Federal listam possíveis repasses da Odebrecht para mais de 200 políticos de 24 partidos políticos” No dia seguinte, a Folha de São Paulo afirmava que o número já havia subido para 316 políticos de 24 agremiações. Na sexta, o Jornal do Brasil noticiava que a lista poderia afetar ainda ministros, militares, integrantes do judiciário. Não por acaso, o “listão da Odebrecht” também foi apelidado por Clóvis Rossi de “a delação do fim do mundo”.
Em geral, os noticiários seguiram a linha de que as listas “não provavam” que os valores se referiam a Caixa 2 da Odebrecht ou dos políticos envolvidos, tampouco comprovariam propina aos mesmos, e que todos deveríamos aguardar a conclusão das investigações pela Polícia Federal, que verificaria a autenticidade dos documentos.
Os acontecimentos de quarta-feira foram ganhando maior proporção no final de semana. No sábado, o UOL noticiava que o esquema de propina funcionava desde o governo Sarney, a partir de novas listas trazidas a público por uma ex-funcionária. A própria foi entrevistada neste domingo, pelo Fantástico. O caso foi abordado com cuidado atípico pela emissora. Sônia Bridi falou com Conceição Andrade, ex-secretária do departamento financeiro da Odebrecht entre 1979 e 1990. Ela guardou documentos que comprovariam o pagamento de propinas nos anos 1980, envolvendo cerca de 500 políticos e membros de governos municipais, estaduais e federal. A Globo decidiu não divulgar o nome dos envolvidos. Diferente dos documentos divulgados na quarta-feira, estas listas amareladas não foram vazadas na internet.
“O Fantástico não vai divulgar os nomes das pessoas que aparecem nas listas. Primeiro porque a polícia ainda não sabe se elas cometeram alguma ilegalidade. Além disso, as duas listas juntas têm mais de 700 nomes. Não haveria tempo nem para citar todos, nem para dar a defesa de cada uma delas. Além disso, escolher alguns nomes e omitir outros não seria justo”.
A justificativa foi a mesma usada no Jornal Nacional de quarta-feira. Em defesa da Globo, poderíamos afirmar que, de fato, com 700 envolvidos – alguns já falecidos – fica difícil ouvir todos os lados da história. A Globo ignorou, entretanto, outros recursos largamente utilizados, como por exemplo, disponibilizar os documentos em sua página na internet e orientar o espectador a acessá-las, por exemplo. Além disso, a emissora não se eximiu de citar os 24 partidos supostamente envolvidos no caso, sem também ouvir sua versão da história. Note-se neste ponto, que há doações descritas nas tabelas realizadas aos diretórios nacionais de alguns partidos, e não apenas a certas figuras. É importante salientar este elemento porque a emissora não teve o mesmo cuidado ao divulgar áudios do ex-presidente Lula e da presidenta Dilma Rousseff, que, em princípio, tem pouca ou nenhuma qualidade comprobatória de crimes contra o erário. De fato, não tenho lembranças de a Globo deixar de citar algum suspeito porque a polícia “não tinha certeza” se eram ou não culpados.
O Jornal da Record não teve o mesmo cuidado que a Globo, e selecionou cerca de 10% dos integrantes da lista que julgou mais relevantes em seu principal telejornal. Dos 200 (ou 316?), 23 políticos foram citados pela Record, do governo e da oposição, inclusive Celso Russomano (PRB), ligado à emissora e à Igreja Universal do Reino de Deus.
Divulgar ou não divulgar: eis a questão
O professor Rogério Christofoletti tratou, há poucos meses, de caso análogo (e de proporções infinitamente menores) ao vazamento do “Listão da Odebrecht”. Um vereador de Florianópolis divulgou uma lista dos “maiores devedores de IPTU da cidade” com nome e valor da dívida, que foi reproduzida, total ou parcialmente, pelos mais diversos veículos de comunicação, em geral, sem ouvir os envolvidos (afinal, eram centenas); sem checar os valores, se os processos estavam em aberto ou não, se as listas eram atualizadas, etc. Nenhum veículo de comunicação se dedicou, cinco meses depois, a fazer este trabalho de reportagem e verificação dos dados expostos publicamente por um parlamentar. A “lista do IPTU” de Florianópolis não representava em si uma reportagem pronta e acabada, mas poderia (e ainda pode) servir de matéria prima para grande trabalho jornalístico e de alta relevância social, que poderia ser potencializado, inclusive, pelos mecanismos da Lei de Acesso à Informação.
Guardadas as devidas proporções, parece ser o caso do “Listão da Odebrecht”. Os veículos em geral não se esqueceram de ressalvar que os documentos apreendidos na casa do presidente do setor de infraestrutura da construtora podem significar nenhuma ilegalidade. Entretanto, até o momento, nenhum destes veículos – nem mesmo os ditos alternativos – buscou checar essas informações, nem produzir uma reportagem de fato sobre este valioso material bruto: verificar os números, comparar as tabelas com as doações declaradas à Justiça Eleitoral, fazer cruzamento de dados, conferir com as cópias de recibos e comprovantes de depósito que estão disponíveis na internet, apenas esperando para serem decifrados por bons jornalistas. Como bem lembra Christofoletti:
“Informações são dados estratificados, hierarquizados, checados, colocados em perspectiva, atrelados a contextos. Jornalistas se ocupam de conferir versões e documentos justamente para não reproduzirem cegamente pontos de vista interessados e dossiês apócrifos. A lista pode ser verdadeira, o vereador-denunciante pode ter as mais republicanas intenções, mas o jornalista tem o dever ético de acreditar que haja algo além do que seus sentidos captam. Desconfiar é um mecanismo de controle de qualidade jornalística. Sempre.”
A verificação dos dados se faz de suma importância, pois, neste momento de acirramento social no país, a divulgação jornalística das listas não cumpre em totalidade seu potencial de bem informar ao público: apenas joga gasolina na fogueira de que todos os políticos, partidos, governantes são igualmente corruptos e corruptores, todos “farinha do mesmo saco”. Além do que, há entre as tabelas documentos que registram doações legais feitas pela Odebrecht, e que se misturam com as demais, colocando todos os envolvidos na vala comum e sem direito a contar a sua versão dos fatos.
Este cenário é piorado por portais supostamente jornalísticos, que exercendo sua função de propaganda pró-governo, divulgam informações inverídicas ou mal fundamentadas tentando vender bom jornalismo. O Brasil 247 noticiou os cálculos de uma internauta que “comprovariam” o real motivo da Rede Globo não estar divulgando a totalidade dos acontecimentos: as doações para o PT estariam de acordo com os números da Justiça Eleitoral, e as do PSDB e do PMDB, não.
“A internauta Thais Moya se deu ao trabalho de cruzar os números da planilha da Odebrecht com os dados do TSE. O resultado, segundo ela, explica porque a mídia e a Lava Jato resolveram abafar a planilha. O cruzamento revela que PMDB e PSDB, somados, omitiram de suas declarações a cifra de R$ 8 milhões em doações. O PT, em oposição, teve redução do valor legalmente declarado de R$ 336 mil”.
O raciocínio de Thais, apesar de bem-intencionado, não pode ser considerado definitivo ou verdadeiro porque abarca só as eleições de 2010 (única que continha dados sobre as doações legais nas planilhas apreendidas) e não a totalidade dos documentos. Neste sentido, O Brasil 247, ao invés de fazer o trabalho jornalístico propriamente dito, reproduz acriticamente os cálculos de uma internauta e se desresponsabiliza sobre as conclusões ou checagem das informações.
Ao despreparo do 247, somam-se comentários que tentam deslegitimar os documentos e as investigações que possam implicar outros partidos para além do PT. Merval Pereira, em seu blog, assinala categoricamente que a divulgação das listas “é sinal de que algum grupo dentro da Polícia Federal está querendo misturar alhos com bugalhos, sabotando as investigações”. Merval segue a lógica predominante da imprensa brasileira, onde a divulgação de grampos de pessoas com foro privilegiado e documentos que possam comprovar crimes só são passíveis de divulgação se implicarem culpa ao PT.
Outros jornalistas de fina estirpe como os do site O Antagonista (formado por egressos da Veja) também se fazem cegos ao concluir e (desinformar) seus leitores de que a lista só prejudica o PT. Para Mainardi et caterva, “a planilha que a PF encontrou no departamento de propinas da Odebrecht – a planilha da Xepa – é mortal para o PT”, porém, “beneficia” os outros partidos. Já as ligações entre Lula e Dilma, grampeadas pela PF, servem para o portal utilizar o termo “criminosos” para se referir ao ex-presidente e a atual mandatária.
A checagem dos documentos virá?
Assim como no caso da lista do IPTU de Florianópolis, corremos o grande risco de que nenhum veículo cheque para valer o material da Odebrecht e que fiquemos reféns apenas dos boletins e vazamentos seletivos da Polícia Federal e do Judiciário, ou seja, com a versão oficial dos fatos.
Não estamos falando de qualquer coisa: comprovada a veracidade dos documentos, trata-se do maior caso de corrupção já documentado na história do país. E estes documentos estão disponíveis aos jornalistas para uma checagem que não sabemos se chegará. “Oferecer a notícia mais correta, mais precisa, mais checada, mais confiável é um compromisso do qual jornalistas profissionais não podem abrir mão”, diria Christofoletti. Parece que os principais veículos do país já abandonaram esta ideia há tempos.
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Diretor do SJSC, Mestrando no POSJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS