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Crise não pode ser desculpa para precarização das relações de trabalho

Sandra Lia*

Nem sempre os efeitos do desenvolvimento econômico são compartilhados entre toda a sociedade. Mas quando o capitalismo entra em crise, o reflexo é sentido por todos, principalmente pelos trabalhadores. A renda fica mais curta, as ofertas de emprego se tornam mais escassas e a insegurança se espalha. Ambiente perfeito para a retomada do discurso de que a legislação trabalhista é engessada, protecionista e precisa se modernizar.

Recentemente, nosso país passou por uma fase de grande desenvolvimento e crescimento econômico. Em 2010, por exemplo, o Produto Interno Bruto (PIB) nacional teve um aumento real recorde de 7,6%. Pelo aspecto social, em virtude do resultado direto da adoção de políticas públicas, milhões de pessoas abandonaram a linha da miséria e a fome foi erradicada.

No mundo do trabalho, embora as taxas de desemprego nunca tenham alcançado patamares tão baixos, ainda assim não se presenciou uma “divisão ideal” dos resultados destes tempos de bonança. Ao contrário. A ideia de “ter emprego” era sempre mais que suficiente para dar por atendida a massa de mais de 45 milhões de pessoas alocadas no mercado formal.

Por outro lado, esse cenário não foi suficiente para reduzir uma grande massa de “invisíveis” que nunca foi beneficiada pela “política do emprego”: trabalhadores na informalidade, indivíduos explorados no campo e na cidade e submetidos à condição de escravos, seres humanos vítimas de tráfico, crianças e adolescentes ainda expostas a situação laboral ilegal… Os efeitos do desenvolvimento e do crescimento econômico, portanto, não alcançaram efetivamente estas pessoas.

Desde o ano passado, o cenário político e econômico brasileiro mudou de forma drástica. Hoje vivemos uma das maiores crises econômicas da história. Em 2015, o PIB caiu 3,8%, o pior resultado desde 1990, e as projeções para este ano não são nada animadoras. Com a atividade econômica em queda, os índices de desemprego vêm subindo. Segundo cálculos do IBGE, a taxa de desocupação trimestral encerrou o mês de janeiro em 9,5%.

É matemático: todas as vezes que a economia desacelera, buscam-se fórmulas para retomada do desenvolvimento, acusando o protecionismo da legislação trabalhista. Na verdade, o capital nunca entra em crise, pois ele apenas precisa de “ajustes” que invariavelmente sacrificam o “humano”.

Não é diferente, agora. Os arautos da preocupação com a “retomada do desenvolvimento econômico” apregoam aos quatro ventos que o excesso de intervencionismo estatal nas relações de trabalho termina por desorganizar a economia. Travestidos de sofisticada e aparente modernidade, depositam na legislação trabalhista a origem de todos os males que impedem a sustentabilidade das empresas.

A situação é tão curiosa que um dos lemas dos trabalhadores nas grandes greves dos anos 80 — “nós não vamos pagar o pato” — foi adotado por uma ala do setor empresarial. E o paradoxo é tão latente que, em épocas como essa, jamais se cogita a necessidade de reformas política e tributária. É sempre e tão-somente a trabalhista que urge.

Poderia ser simplista dizer que isso ocorre porque a corda arrebenta do lado do mais fraco. Mas esta afirmação é, na verdade, a essência das relações de trabalho. Elas são efetivamente pautadas numa situação fática absolutamente desigual: de um lado, o capital avassalador (às vezes “imaterial”, travestido de “mercado”); do outro lado, o trabalho, o humano. Os adeptos da reforma da legislação trabalhista sacrificam a memória e ignoram o processo histórico a fim de defender o afastamento da intervenção estatal. E é esse o ponto crucial para compreensão da doutrina perversa que atribui à proteção a pecha de ultrapassada e antiquada.

Historicamente, a primeira relação na qual se reclamou a atuação do Estado foi exatamente a laboral, tamanho eram os descalabros que caracterizaram a Revolução Industrial: jornadas diárias de trabalho superiores a 16 horas; inexistência de descanso semanal ou para refeições; condições precárias no que tange à saúde e segurança; exploração de crianças, mulheres e idosos, entre outros.

É natural e imprescindível, portanto, que a legislação trabalhista seja protetiva. O princípio da proteção é um dos princípios norteadores do Direito do Trabalho exatamente para evitar-se a barbárie cometida nos primórdios da industrialização.

A situação é muito diferente no século XXI? Haveria uma justificativa racional para se afastar a atuação estatal em proteção do economicamente mais fraco? As partes da relação de trabalho estão em um patamar mínimo de igualdade que lhes permita ajustar e pactuar com equilíbrio a prestação do trabalho?

Os tempos mudaram, mas a essência dessas relações continua igual. Mesmo com a evolução econômica alcançada pela sociedade no século XXI, a crueldade que permeia a relação de trabalho é ainda latente e não nos faltam exemplos para comprovar a ausência de condições de igualdade para contratação do trabalho. Ficaremos aqui com apenas dois deles, paradigmáticos, pois tratam de situações consolidadas no ordenamento jurídico e que vêm sofrendo constantes ameaças de alteração legislativa. Estas alterações, inclusive, pairaram na época do pleno desenvolvimento econômico e estão em vias de forte retomada, sob o pretexto de “auxiliar” no combate à crise.

O primeiro deles diz respeito ao conceito legal de trabalho escravo. O art. 149 do Código Penal considera trabalho escravo contemporâneo a restrição da liberdade, a servidão por dívida, a jornada exaustiva e as condições degradantes. Todas essas formas aviltam diretamente a dignidade da pessoa que trabalha. A legislação, juntamente com outras políticas públicas de combate à escravidão contemporânea, colocou o Brasil como modelo de vanguarda mundial na matéria.

No entanto, tramita no Senado Federal projeto de lei que esvazia o conceito, retirando do seu núcleo a jornada exaustiva e as condições degradantes, tudo para reduzi-lo às situações mais tradicionais típicas da escravidão do século XIX. A proposta, além de ser um retrocesso descomunal e desconsiderar a realidade de grande número de pessoas que lamentavelmente ainda vivem desta forma, no campo e na cidade, foi surpreendentemente pautada no final do ano passado aproveitando-se da crise política. Apenas uma grande mobilização da sociedade provocou a retirada de pauta, mas o projeto continua tramitando.

O segundo exemplo envolve o verdadeiro aniquilamento do Direito do Trabalho, com a instituição da terceirização ampla, geral e irrestrita. Trata-se do PL 4.330, já aprovado na Câmara dos Deputados e remetido ao Senado Federal (PLC 30/2015). A lógica do projeto é das mais perversas, pois retira o que é considerado mais caro em uma relação de emprego: a pessoalidade e a integração do indivíduo no empreendimento.

O trabalhador passa a ser tratado como “coisa”, respondendo não ao seu clássico patrão, mas à uma empresa intermediadora de mão de obra, esta, sim diretamente contratada. Há tempos, a legislação e a jurisprudência vêm impedindo o trator da institucionalização da terceirização, admitindo-a apenas em casos específicos (asseio, conservação, segurança) e em funções relacionadas à atividade-meio, ou seja, à aquela atividade que não é ligada diretamente ao produto ou ao serviço final. Estender a terceirização a todas as frentes empresariais tem por objetivo diluir o modelo de emprego, tornando-o mais barato e dissipando a proteção social.

Estas duas tentativas de alteração legislativa demonstram que a necessidade da intervenção do Estado é, nos tempos atuais, tão ou mais necessária do que era na época da industrialização. Não falta, nos alicerces da ordem jurídica brasileira, a preocupação em oferecer ao ser humano destituído de riqueza mecanismos que propiciem uma existência digna por meio do trabalho.

A Constituição Federal é a prova concreta desta afirmação, pois prevê, ao lado do princípio do valor social da livre iniciativa, os princípios do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana (art. 1º). Vai ainda mais longe quando delineia os princípios da ordem econômica, fundando-a na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa; assim como na propriedade privada, desde que esta desempenhe sua função social (art. 170).

Não é possível admitir, portanto, que a “conta” da crise econômica seja suportada apenas por um lado do binômio capital-trabalho. E, como o “capital” é indubitavelmente a parte mais equipada e preparada, é função precípua do Estado agir diretamente nesta relação, para dar harmonia a esse convívio. Esta ação deve iniciar-se pela manutenção das conquistas históricas asseguradas por lei; pela promoção de outras novas, que busquem a adequação das situações de fato ao mundo atual; pela forte atividade fiscalizatória de auditores e pela vigorosa atuação da Justiça do Trabalho.

Nos últimos anos, como Instituição do Estado vocacionada à salvaguarda dos direitos humanos decorrentes das relações laborais, o Ministério Público do Trabalho também vem agindo fortemente como protagonista na busca deste equilíbrio, tanto na sua atuação judicial e extrajudicial como na sua atuação política, acompanhando de perto todo o processo legislativo para preservar os valores da democracia, conforme lhe incumbiu o constituinte.

Assim, não é possível admitir, sob a desculpa da superação da crise econômica, que o capital submeta o trabalho a sacrifícios ainda maiores, para retomar seus níveis de lucratividade. Hoje em dia, o “afastamento do Estado”, a “reforma trabalhista” e a “desregulamentação” são apenas disfarces sofisticados da precarização das relações de trabalho.

É exatamente em um momento como este, de crise e incertezas, que o Estado e suas Instituições devem atuar forte e pontualmente na busca do equilíbrio material entre o capital e o trabalho para evitar a retomada da barbárie e para possibilitar a inclusão social pelo trabalho com dignidade.

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*Sandra Lia Simón é Subprocuradora-Geral do Trabalho e Diretora-Geral Adjunta ESMP.
Fonte: Intersindical

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