O estado de espírito recomendável para a imprensa – grande ou pequena – é o de alerta. Não é por acaso que um dos primeiros periódicos editados no Brasil (1822) ostentava o título de Sentinela da Liberdade. Na verdade o bravo baiano Cipriano Barata editou diversas Sentinelas, à medida que eram fechadas ou ele trancafiado.
Vigilância é uma coisa; dedo no gatilho, outra.
Nossa imprensa não se tocou com a Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, que desenhou o arcabouço do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. E quando este foi lançado, em 21 de dezembro de 2009, os porteiros (e porteiras) das redações estavam mais interessados na aparência de Dilma Rousseff (que aparecia pela primeira vez sem peruca) do que no teor do programa.
Trabalho escravo
As primeiras matérias pretendiam apenas exacerbar as naturais divergências entre a área militar encabeçada pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, e as entidades e militantes dos direitos humanos em torno da chamada Comissão da Verdade – para apurar violências e crimes cometidos durante a ditadura. Na verdade não se tratava de criar a comissão, mas um grupo de trabalho para propor ao Legislativo a sua constituição. Aliás o nome é rigorosamente impróprio: não existe verdade, existe a busca da verdade. Jornais deveriam estar atentos a estas sutilezas.
De repente, irrompem a galope as corporações empresariais da mídia comandadas pela intrépida Associação Nacional de Jornais (ANJ) e subvertem um debate sério e grave que a sociedade brasileira finalmente parecia disposta a encarar. A Joana D´Arc das liberdades considera mais importante pinçar do 3º PNDH sugestões e indicações de propostas que vinculam conteúdos da mídia (eletrônica) a violações de direitos humanos do que punir torturadores. Passa-se uma borracha nos Anos de Chumbo e cria-se um factóide preventivo.
A edição do Estado de S.Paulo de sábado (9/1) é exemplo de uma cruzada enganosa empreendida principalmente pelos jornalões paulistanos. “Plano de Direitos Humanos provoca onda de protestos”, berrou a manchete da capa. Na página interna (A-4): “Igreja e até ministro de Lula reagem ao programa de Direitos Humanos”.
É capciosa a laranjada que procura justificar o título: a igreja católica tem sido intransigente na apuração dos crimes cometidos pelos órgãos de segurança durante o regime militar. Discorda do 3º PNDH numa das sugestões secundárias: banir símbolos religiosos do interior de instalações públicas para garantir a laicidade e isonomia do Estado (tal como já aconteceu na Espanha, país mais católico do que o Brasil).
O ministro que contestou o programa foi o da Agricultura, Reinhold Stephanes, que, como todos sabem, esqueceu a agricultura como um processo multifacetado e multifuncional para tornar-se porta-voz da ala dos ruralistas. Esqueceu que trabalho escravo é violação de direitos humanos.
Primeiro indício
Os repórteres não têm culpa, quando a ANJ sopra as trombetas vale tudo: a matéria do Estadão (que naquela data completava 162 dias sob censura judicial) é um paradigma de manipulação. O mais importante e mais original está escondido e mutilado no pé da página: uma entrevista do cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, autoridade mundial e relator da ONU, que relata a história dos três planos nacionais de direitos humanos desde 1996, no primeiro mandato de FHC, todos igualmente amplos e multidisciplinares, coerentes com as concepções internacionais. Título: “Especialista defende abrangência do plano e diz que Lula e FHC acertaram” (ver aqui, para assinantes).
Quando jornalismo era profissão valorizava-se o que era novo. Agora os manuais de jornalismo são redigidos pelos luminares da ANJ.
Quem teve a ousadia de vincular baixaria televisiva com violação de direitos humanos foi o jurista José Gregori, então Secretário Nacional de Direitos Humanos. Promovido a ministro da Justiça, Gregori manteve a rigorosa postura. As empresas de TV tentaram espernear, mas calaram-se: o governo estava estribado no artigo 220 da Constituição, que exige a classificação da programação televisiva de acordo com a faixa etária.
A ANJ já existia, já era um lobby industrial em defesa de interesses setoriais como outro qualquer, porém discretamente, com alguma prudência. Não menosprezava a razão social das empresas afiliadas, procurava ser uma entidade “jornalística”. Agora perdeu a compostura, desembesta ao primeiro indício de contrariedade. Como não dispõe de um quadro de consultores especializados, confia nas “sentinelas” da grande imprensa. E estas – por cansaço ou sob o efeito do mormaço estival – primeiro atiram e, depois, perguntam quem vem lá.
Fonte: Alberto Dines – Observatório da Imprensa/FNDC.
Autor:jornalista Alberto Dines – Observatório da Imprensa