Irrevogável não é a lei de anistia. Irrevogáveis são os direitos e garantias individuais referidos na Constituição Federal (arts. 5º, 60, parágrafo 4º. inc. IV), justamente os que mais que sofreram sob a ditadura, muitos dos quais até hoje carentes de reparação. O terrorismo de Estado não pode ser igualado à luta que se empreendeu contra ele, de resto, quase toda ela, punida sem defesa, na época em que se verificou, coisa que não ocorreu com os responsáveis pela truculência oficial. O artigo é de Jacques Távora Alfonsin.
Jacques Távora Alfonsin
A polêmica acesa com a ameaça de demissão do ministro da Defesa e de chefes militares, criada a partir de um decreto da presidência da república que institui uma “comissão nacional da verdade”, capaz de possibilitar modificação da lei de anistia, está dividindo a opinião de juristas e políticos, ao ponto de, segundo alguns, gerar uma crise constitucional de efeitos graves.
O problema todo parece ter sido criado pela interpretação que se está dando ao Decreto presidencial 7037 de 21 de dezembro passado, que aprovou o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, cuja Diretriz 23 (Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado) estabeleceu como Objetivo Estratégico I, o seguinte:
Promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo art. 8o do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
Ação Programática: a) Designar grupo de trabalho composto por representantes da Casa Civil, do Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, para elaborar, até abril de 2010, projeto de lei que institua Comissão Nacional da Verdade, composta de forma plural e suprapartidária, com mandato e prazo definidos, para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política no período mencionado, observado o seguinte: (seguem-se várias condições de execução)
Das muitas opiniões que a imprensa tem publicado, a respeito, uma das que defende qualquer impossibilidade de modificação da lei de anistia, do modo juridicamente menos defensável, por incrível que pareça, pode ser a de um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, que escreve semanalmente na Zero Hora.
Entende o referido autor que a irrevogabilidade da anistia reside no fato de que “a anistia pode ser mais ou menos justa, mas não é a justiça seu caráter marcante. É a paz. No arco-íris social, com suas contradições, essa me parece ser a nota dominante.” (edição de 4 de janeiro corrente).
Partindo de quem parte essa opinião, ela não deixa de surpreender por três razões principais:
1. A paz jamais conquistará ser vivida e gozada pelo povo todo, com fundamento outro que não o da justiça. Outra base só pode encontrar alguma “razão” em quem ignora uma simples relação de causa e efeito, pois a justiça é um fundamento indispensável, inafastável, necessário, da paz. Desde as origens latinas, como estudantes de primeiro semestre de muitas faculdades desse estudo ainda aprendem, “opus iustitiae pax” (a obra da justiça é a paz).
Pobre do tal arco-iris social, então. A lembrança não poderia ser mais infeliz. Segundo a imagem bíblica, o arco-iris foi colocado por Deus como sinal de sua reconciliação com o povo todo depois do dilúvio. A diferença, no caso, é que o dilúvio da ditadura brasileira, cujas águas ainda se encontram longe de dar pé a quem ousou contestar as suas violações de direitos humanos, é feito de um ódio que continua desafiando qualquer arco capaz de abrigar iris suficiente para iluminar a história com a verdade que, agora, a tal Comissão pretende viabilizar.
Pelas reações iradas que se tem ouvido, se essa ainda nem teve tempo para elaborar o projeto de lei previsto na ação programática da diretriz 23 do PNDH-3, imagine-se o que acontecerá se ela conseguir redigi-lo e obtenha concordância do Executivo para ele ser encaminhado ao Congresso Nacional.
2. Uma argumentação como a do referido articulista, portanto, em favor da irrevogabilidade da lei, explica porque, volta e meia, branda suas lições, algumas repassadas de ironia, contra a impunidade que, a seu ver, costuma seguir-se às ações de gente pobre sem-terra e sem-teto que ocupa terras, a isso coagida pela miséria e pela opressão social de que é vítima. Como pensam outros juristas de mesmo perfil ideológico ao dele, aquela é uma paz que pode conviver com a injustiça social refletida nessas defesas de vida, dignidade e cidadania.
É um tipo específico de paz, discriminatório, reservado para uma classe, de preferência privatista e patrimonialista, que garanta tranqüilidade para alguns, mesmo ao preço da insegurança e do sofrimento da maioria. Tudo aquilo que um Estado autenticamente democrático e de direito repudia como materialmente falso, injusto.
3. É lícito concluir-se que, de acordo com esse raciocínio sobre a lei de anistia, o status militar, o passado político de quem abusou do poder, prendeu, torturou, matou, deve continuar guardando a sua podridão disfarçada, assim como os sepulcros caiados, a anistia impondo fazerem-se iguais impunidade e imunidade. Bem na linha dos chavões que estão circulando: “Não abrir de novo velhas feridas”, “não mexer com fatos (e principalmente poderes) que afetem a disciplina militar”, “não revogar uma lei que pacificou o país”, “o terror não se fez sob responsabilidade exclusiva do Estado”.
Esses são argumentos usados por quantos ainda não se convenceram que feridas fechadas podem esconder doenças encubadas, que militares e outros agentes públicos não têm outros poderes senão os delegados pelo povo, numa autêntica democracia, e foi pela desobediência desse princípio, exatamente, que o país viveu um período da sua história marcado por sofrimento, tortura, morte e injustiças que mantêm muitas feridas ainda abertas.
O terrorismo de Estado não pode ser igualado à luta que se empreendeu contra ele, de resto, quase toda ela, punida sem defesa, na época em que se verificou, coisa que não ocorreu com os responsáveis pela truculência oficial. Isso, aliás, pode ser deduzido pela visível destinação que teve o parágrafo 2º do art. 1º da lei de anistia (6883 de 28 de agosto de 1979): “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.”
Não é possível comparar, por exemplo, os objetivos que a repressão executada pelo Delegado Fleury buscava, com aqueles que, de tão cruelmente perseguidos e sofridos, levaram Frei Tito a se suicidar, fora da pátria e do povo que defendeu com tanto ardor.
Irrevogável, ao contrário do que apregoa o ex-ministro, não é a lei de anistia. Irrevogáveis são os direitos e garantias individuais referidos na Constituição Federal (arts. 5º, 60, parágrafo 4º. inc. IV), justamente os que mais que sofreram sob a ditadura, muitos dos quais até hoje carentes de reparação.
É mais do que hora, portanto, de se defender essa Comissão da Verdade, para que as vergonhosas violações de direitos humanos, executadas por sucessivas ditaduras brasileiras, algumas registradas em publicações como “Brasil nunca mais” e “Batismo de sangue” (Frei Betto), para lembrar apenas duas das mais conhecidas, não sigam estimulando, escondidas em segredo oficial, a repetição de infidelidades históricas que o Estado brasileiro já praticou contra o seu povo.
(*) Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.
Fonte: Boletim Carta Maior