Samuel Lima
Professor de Jornalismo e da Pós-Graduação em Jornalismo (Posjor) da UFSC e pesquisador do objETHOS e do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC)
Uma breve mirada sobre o extenso, dolente e tenso ano de 2016 (que ainda não terminou, politicamente) permite algumas certezas provisórias. Uma delas é: o golpe que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff não teria acontecido sem a militância e protagonismo da mídia hegemônica – com o trio Globo, Folha de S. Paulo e Estadão à frente.
Atuando em fina sintonia com a força tarefa da Lava-Jato (PF, MPF e juiz Moro), o Supremo Tribunal Federal (legitimando os atos do réu que presidia a Câmara Federal) e o Centrão, no Congresso Nacional, a mídia monopolista deu o tom da prosa, hegemonizou corações e mentes, fraudou, praticou vazamentos seletivos em profusão, e de forma cirúrgica construiu as bases de um Estado de Exceção, cujos sinais estão muito evidentes.
Na virada de 1º de janeiro, e horas subsequentes, três acontecimentos recolocam a mídia monopolista (comandada por um pequeno grupo de “famiglias” – Marinho, Mesquista, Frias, Civita, Saad, Abravanel & Associados) como sempre na vanguarda do atraso, linha de frente da defesa de um governo ilegítimo, sem voto popular, que ajudaram a “entronizar” no poder – operando uma agenda lesa-pátria e antipopular. Falo objetivamente de três chacinas: a de Campinas (o feminicídio nunca assim descrito), e as matanças hediondas nos presídios de Manaus e Roraima.
Feminicídio
Poucos minutos antes da virada do ano, o técnico de laboratório Sidnei Ramis de Araújo, de 46 anos, invadiu uma casa onde a família de sua ex-mulher comemorava o réveillon em Campinas e matou oito mulheres (incluindo Isamara Filier, 41 anos), seu filho, João Victor Filier de Araújo, 8 anos e mais duas pessoas. O assassino se suicidou em seguida.
O crime premeditado foi tratado pela mídia como chacina, evitando-se falar em feminicídio. O Portal G1 chamou de “chacina”; a Folha de S. Paulo tratou como “assassinato coletivo” e o Estadão cravou na factualidade (“Homem mata ex-mulher, filho e mais 10 durante Revéillon em Campinas”), embora tenha registrado que o crime fora premeditado.
É no site da revista Veja (Grupo Abril) que o/a leitor/a vai encontrar o enquadramento que orientou, por absoluta naturalização do crime de ódio à mulher, o acontecimento hediondo de Campinas. “Leia carta deixada por autor de chacina em Campinas”, é o título da matéria publicada no site (ed. 1º/jan/2017, 19h08). Editando trechos considerados como “acusações sem provas e citações a outras pessoas”, para o jornalismo de Veja o matador “faz ameaças e explica seu plano”. Feminicídio? Misoginia? Qual nada…
As digitais do discurso de ódio, legitimado pela mídia hegemônica, estão na carta do assassino e suicida, escritas em português (do Brasil): as mulheres são tratadas como vadias, a Lei é “Vadia” da Penha e a ex-presidente Dilma também não foi poupada e pela enésima vez é chamada de “vadia”. Sobre isso o silêncio da mídia hegemônica é ensurdecedor. Aqui e acolá, nos blogs e espaços de jornalismo independente na internet, se ouve ainda o clamor da indignação e a precisão das análises de pesquisadores e jornalistas. A palavra “vadia” é citada 12 vezes na carta do assassino.
A jornalista Cynara Menezes observou que “contra Dilma, foram incontáveis as vezes em que ela foi chamada de ‘vadia’ e outros termos homólogos a ‘prostituta’ na internet e em cartazes nas manifestações verde e amarelas: ‘puta’, ‘vaca’, ‘vagabunda’, ‘quenga’. Em 2010, o cartunista Nani foi pioneiro no machismo contra Dilma ao mostrar a candidata ‘rodando a bolsinha’ numa esquina; a charge foi divulgada pelo portal mais visitado do país, o UOL.
Em análise publicada no seu blog (Socialista Morena), Cynara indaga precisa: “Quem inventou o ódio às feministas presente na carta do atirador de Campinas? Quem o disseminou? Nos programas pseudohumorísticos da televisão aberta e nas redes sociais, é considerado piada inofensiva chamar as feministas de ‘feminazis’, achincalhá-las noite e dia, demonizá-las”. No final, reflete sobre o papel da mídia no feminicídio de Campinas, sem meias palavras: “É inegável que, para atingir Dilma, a mídia naturalizou o desprezo às mulheres que se destacam e que lutam contra o machismo. Precisa assumir sua enorme responsabilidade na misoginia que insuflou. O caso de Campinas infelizmente não é fato isolado”.
“Acidente pavoroso”
Três longos dias se passaram entre a chacina de 56 presos (dos quais 28 foram decapitados) no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM), até o presidente Temer dar o ar de sua graça. Na noite de domingo (08/01), mais quatro mortes foram confirmadas em Manaus, subindo para 60 o total de vítimas.
O Portal G1 reproduziu a fala de Mr. Temer: “Eu quero numa primeira fala, mais uma vez, solidarizar-me com as famílias que tiveram seus presos vitimados naquele acidente pavoroso que ocorreu no presídio de Manaus”. Sem nenhum contraponto ou voz discordante, o portal do Grupo Globo continua de microfone aberto para o presidente impostor isentar seu governo e o do Amazonas de quaisquer responsabilidades: “Vocês sabem que lá em Manaus o presídio era terceirizado, era privatizado, e, portanto, não houve, por assim dizer, uma responsabilidade muito objetiva, muito clara, muito definida dos agentes estatais”. O “presidente disse” e voltou a dizer e por aí segue o “jornalismo declaratório” chapa-branca, sem questionamentos ou contrapontos possíveis.
A cobertura da Folha de S. Paulo, neste caso, partiu de uma reportagem investigativa em equipe (assinada pela jornalista Bruna Chagas, de Manaus; Dhiego Maia, Fabiano Maisonnave e Fernanda Pereira Neves, de S. Paulo), publicada na edição de 02/01/2017. Só no 4º parágrafo o/a nobre leitor/a vai encontrar um dado mais preciso do contexto: “Em Manaus, o motim começou na tarde de domingo (1º), no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), localizado no km 8 da BR-174. Na unidade havia 1.224 homens, o triplo da capacidade (de 454 vagas), segundo dados do mês passado do governo estadual”.
O pecado maior é a omissão de um dado fundamental na hierarquia da informação jornalística da reportagem coletiva: o Compaj é um presídio privatizado. O leitor precisa apurar muito sua lupa e paciência para descobrir, lá pelas tantas nos 5.649 caracteres com espaços a informação solta e sem contexto: “Dos reféns no Compaj, 74 eram detentos e outros 12 funcionários da Umanizzare, empresa de gestão privada que presta serviço no complexo”.
A informação só iria aparecer com destaque nas páginas da Folha no dia 06/01: “Matança em Manaus põe gestão privada de presídios em xeque”, era o título da matéria. No lead mais uma omissão grave: o nome da empresa gestora do presídio palco da chacina não era citado. Confira: “O fato de a administração do presídio de Manaus palco de 56 mortes ser de uma empresa privada reacendeu a discussão dos modelos de gestão das penitenciárias do país. Alardeada como alternativa à falência do sistema carcerário, a gestão privada tem vantagens e desvantagens, mas está longe de ser solução mágica, dizem especialistas”. A gestora do Compaj é a empresa Umanizzare Gestão Prisional Privada.
Uma ponta solta do novelo de responsabilidades pelos crimes aparece outra vez jogada no meio do texto: “O custo que o Estado do Amazonas tem com seus presos em unidades geridas pela iniciativa privada é quase o dobro da média nacional. Segundo dados do governo Estadual do Amazonas, no ano de 2016, foram pagos R$ 301 milhões à Umanizzare por serviços em seis presídios no Estado. No Amazonas, a empresa tem sob sua responsabilidade 6.099 detentos, o que representa um custo médio de R$ 4.112 ao mês”. Ou seja, a privatização dobrou o custo público, logo a pergunta é: onde foram aplicados esses recursos?
A cobertura da Folha é objeto de análise crítica da ombudsman do jornal, Paula Cesarino Costa, em sua coluna dominical (08/01/2017) – “Cada cabeça, uma sentença”. A jornalista, não obstante considerar “o bom material investigativo e eficiente acompanhamento factual”, cobra duramente: “O ponto negativo foi o jornal publicar declarações de autoridades – que variavam do absurdo ao constrangedor – sem que elas fossem questionadas e problematizadas. Na edição de sexta-feira, 6, que trazia editorial crítico ao governo, o jornal noticiou a infeliz declaração do presidente em meio à reportagem sobre pacote de segurança requentado. Ao não destacar a frase de Temer sobre o ‘acidente’, o jornal deixou de iluminar faces do presidente: lento nas reações e infeliz na comunicação de governo”.
Ao final, a jornalista cobra do diário paulista: “O jornal não pode aceitar barbaridades como decapitações de presos sob a guarda do Estado nem colaborar para sua vulgarização. É preciso indignação. É preciso cobrar que, para cada cabeça decepada, haja uma sentença judicial. A defesa dos direitos civis não pode estar associada a correntes ideológicas. É uma cláusula pétrea do contrato social de um país. São direitos inegáveis, irredutíveis, acima de governos e governantes. Não podem ser violados impunemente, seja por incompetência ou omissão”. Seu brado parece não ecoar nos “aquários” daqueles que comandam a Folha. A manchete desta mesma edição é uma defesa, sem pudor, da ideologia da previdência privada – pano de fundo da maior jogada do governo Temer, em tramitação no Congresso.
Apologia à chacina
Sobre a chacina de Roraima, há dois fatos jornalísticos que destaco. O primeiro, foi a mentira do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, ao afirmar que a governadora Suely Campos (PP-RR) não havia pedido auxílio federal – e foi desmentido através da exibição de documento oficial, protocolado em 24 de novembro de 2016 em seu ministério. A imprensa no geral, deixou barato e não cobrou uma posição de Temer sobre a questão. Em uma democracia de fato, Moraes já seria ex-ministro por mentir à sociedade. A segunda, envolveu um auxiliar direto do ora presidente da República, o secretário nacional da Juventude. Vou me ater ao segundo caso, que me parece mais simbólico.
Observo, por fim, o caso que levou à queda de mais um integrante da cúpula do governo Temer. O Portal G1 (Grupo Globo) assim noticiou: “Secretário pede demissão e Temer aceita depois de declaração polêmica” (grifo meu). A reportagem se referia à fala de Bruno Júlio, secretário nacional de Juventude, referindo-se às chacinas de Manaus e Roraima: “Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”.
No mesmo dia, ele foi demitido (“pediu exoneração e o Presidente aceitou”), ante a repercussão negativa, dentro e fora do país. O órgão é vinculado diretamente à Presidência da República. Mas, observemos: para o G1 uma autoridade pública, cujo local de fala é o Palácio do Planalto, não fez apologia ao crime e apenas deu uma declaração “polêmica”.
O ex-secretário havia falado para o jornal O Globo (coluna de Ilimar Franco, que deu o “furo”, mas não tinha o áudio da entrevista) e para a jornalista Grasielle Castro, do HuffPost Brasil (“Secretário da Juventude de Temer defende mais chacinas em cadeia”), que gravou a entrevista e foi decisiva para desmascarar a tentativa de Júlio de negar o que dissera (ouça o áudio do HuffPost Brasil e leia na íntegra a transcrição): “Eu sou meio coxinha sobre isso. Sou filho de polícia, né? Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana. Isso que me deixa triste. Olha a repercussão que esse negócio que o presídio teve e ninguém está importando com as meninas que foram mortas em Campinas”.
A Folha manteve o mesmo tom na cobertura tratando a declaração criminosa como “polêmica”, mas pelo menos na versão online publicou um título mais adequado: “Secretário de Temer cai após dizer que massacre ‘tinha que matar mais’”. Observe o texto da Folha: “O secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio (PMDB-MG), vai deixar o cargo depois de criticar a repercussão do massacre nos presídios do país, que deixaram 93 mortos na primeira semana do ano. A polêmica começou após ele declarar ao jornal “O Globo” que “tinha que matar mais’ ao comentar ao a morte dos presos. Em entrevista à Folha pouco depois, Júlio negou a frase e disse que sua opinião havia sido ‘deturpada’” (grifo meu).
O Estadão, pelo menos, não tratou o episódio como “polêmica” e foi mais incisivo em sua manchete primeira, “Secretário de Temer cai após apoiar massacre em presídios”, pouco tempo depois alterada para “Secretário de Temer cai após criticar ‘valorização de morte de condenados’”. Confira o lead: “O secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio, deixou o cargo na noite desta sexta-feira, 6, depois de criticar a repercussão dada ao massacre de presos no Amazonas e em Roraima. Ele disse que ‘está havendo uma valorização muito grande da morte de condenados, muito maior do que quando um bandido mata um pai de família que está saindo ou voltando do trabalho’. (…) Para o Palácio do Planalto, a declaração do secretário foi ‘infeliz’, uma ‘tragédia’. O governo agiu rápido para evitar uma nova crise e costurou a saída do secretário”.
Corrupção da opinião pública
Os dados da Pesquisa Brasileira de Mídia (2016), divulgados no começo de dezembro passado, indicam com clareza solar o peso vertical do monopólio de mídia sobre a formação a opinião pública, no país. O estudo, encomendado pela Casa Civil da Presidência da República junto ao Ibope Inteligência ouviu 15.050 pessoas, nos 26 estados mais o Distrito Federal, cobrindo mais de 700 municípios.
O índice de confiança nas notícias apurado na pesquisa é contraditório com o alcance da mídia: Jornal (impresso) tem 60% de taxa de confiança, rádios com 57%, televisão com 54%; revistas com 40% e meios digitais têm os índices mais baixos – sites, com 20%, redes sociais, 14% e blogs com apenas 11%. No entanto, isso diz ainda muito pouco.
A pergunta reveladora do peso do monopólio é outra: “Em que meio de comunicação o (a) sr (a) se informa mais sobre o que acontece no Brasil?”. A TV aparece destacada com 63%, seguida da Internet com 26%, Rádio com 7% e Jornal com 3%. É como resumiu a pesquisadora Lívia Vieira, num diálogo breve conosco via Facebook: “O predomínio da TV como fonte de informação (63%) é assustador, dado o cenário de monopólio que temos. Isso explica bastante coisa. Internet, rádio e jornal, somados, não chegam nem perto…”. Dos respondentes, 50% afirmam acessar a internet 7 dias por semana, contra 37% que dizem não acessar nunca.
Para o jornalista Luciano Martins Costa, especialista em crítica de mídia e mestre em Comunicação, que colaborou muitos anos com o Observatório da Imprensa, “esse jornalismo é resultado de quase duas décadas de destruição da diversidade política nas redações: desde o início deste século, sobrevivem ou são contratados nas principais empresas de mídia apenas os profissionais que aceitam a tarefa de desmoralizar todo e qualquer protagonista da cena pública que se aproxime do perfil humanista. Em contrapartida, qualquer imbecil que se empenhe em divulgar preconceitos, intolerância e outras bestialidades do pensamento reacionário, ganha status de filósofo”.
Finalizo tomando emprestada as palavras de Sylvia Moretzsohn, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e minha colega aqui no objETHOS: “Como não se cansam de dizer o Venicio Lima e o Juarez Guimarães, a pior de todas as corrupções é a corrupção da opinião pública”.
O vício da “narrativa torta” aparece e é confrontado pelo sociólogo italiano Domenico Di Masi, em entrevista ao jornal Valor Econômico(Grupo Globo). Repetindo até a náusea o mantra “o país está quebrado”, a jornalista Cristiane Barbieri, que abre a conversa com Di Mais recitando esse bordão midiático (a crise é inegável, mais a narrativa midiática sobre a crise econômica é muitíssimo mais grave), retoma a questão perguntando: “Estamos discutindo a reforma da Previdência, num país quebrado e a principal alternativa apresentada é o aumento da idade para a aposentadoria…”. Ao que o sociólogo responde: “O Brasil não está sem dinheiro. Os milionários não fazem parte do país? O Brasil tem muito dinheiro. Os pobres é que não têm dinheiro. Os impostos no Brasil são cerca de 30%, enquanto na Itália giram em 60%. É preciso redistribuir essa carga” (Caderno Eu & Fim de Semana, ed. 06/01/2017, p. 4-6).
A julgar pela primeira semana (ainda faltam 51) de 2017, este parece ser o rumo da mídia hegemônica no país: seguir sua militância fundamentalista, que atenta contra a democracia e os valores civilizatórios, e quando levada aos extremos corrompe a opinião pública. A ver.