Samuel Lima*
A Folha de S. Paulo, maior jornal diário impresso do país, representa a fina flor da elite econômica e política de S. Paulo, e é vanguarda do movimento pró-impeachment da Presidente Dilma Rousseff.
É nesta condição que reflito sobre o seu editorial “Nem Dilma nem Temer”, publicado na capa (como em raras ocasiões), na edição de domingo, 3 de abril de 2016. O texto é, desde a primeira linha, um libelo em favor do golpe político, agora mudando de impeachment para um pedido de “renúncia”.
Em 14 rasos parágrafos, lembrando sua melhor performance em defesa do golpe militar em março de 1964, o jornal chega a uma conclusão, depois de mais de dois anos de cerco político: “A presidente Dilma Rousseff (PT) perdeu as condições de governar o país. É com pesar que este jornal chega a essa conclusão. Nunca é desejável interromper, ainda que por meios legais, um mandato presidencial obtido em eleição democrática” (Fonte:http://migre.me/tqjfx).
O caríssimo leitor não verá uma vírgula sequer de autocrítica do papel nefasto que a imprensa cumpre na “construção” da crise. Derrotados na batalha pela opinião pública, o governo Dilma e as entidades da sociedade civil que se opõem ao golpe jurídico-midiático-político em curso, jamais lerão nas páginas da Folha qualquer menção nesse sentido.
Ao contrário, reafirma o mantra que é repetido ad nauseam nas redes sociais e nos discursos pró-impeachment: toda corrupção nasceu no Brasil em 1º de janeiro de 2003, com a posse do ex-presidente Lula e blá-blá-blá… E lá pelas tantas, o editorialista resolve zoar na cara do leitor: “Esta Folha continuará empenhando-se em publicar um resumo equilibrado dos fatos e um espectro plural de opiniões”. Equilibrado? Como assim?
Na falta de provas, muda-se a prosa
O contorcionismo verbal da Folha explicita o que está incomodando a mídia monopolista: o fato de que os movimentos sociais, formadores de opinião como intelectuais, artistas e pesquisadores de renome saíram em defesa da democracia e do Estado de Direito. Não é pouca coisa a palavra de Raduan Nassar, Letícia Sabatella, Aderbal Freire, Chico Buarque, Caetano Veloso, só para citar alguns dos tantos que denunciaram: impeachment sem crime de responsabilidade é golpe!
É visível, nos últimos dias, esse desconforto público que colunistas, apresentadores de programas noticiosos no rádio e TV, vêm demonstrando com o selo de “golpistas” grudado na lapela de seus microfones e elegantes paletós.
A Folha recorre ao surrado argumento produzido pelo Datafolha: “Formou-se imensa maioria favorável a seu impeachment (sic). As maiores manifestações políticas de que se tem registro no Brasil tomaram as ruas a exigir a remoção da presidente”. O obstáculo “à recuperação do país”, para o editorialista da Folha, é a presença de Dilma Rousseff no cargo, independente dos 54,5 milhões de votos que ela obteve nas eleições. O país não está “crispado, paralisado” como tenta convencer, na base do texto publicitário, o diário paulista.
No fim dessa retórica, típica de mesa de bar, a Folha reconhece que não há provas “irrefutáveis” para assegurar o impedimento da Presidente: “Embora existam motivos para o impedimento, até porque a legislação estabelece farta gama de opções, nenhum deles é irrefutável. Não que faltem indícios de má conduta; falta, até agora, comprovação cabal. Pedaladas fiscais são razão questionável numa cultura orçamentária ainda permissiva”.
No meio dessa polifonia, a voz firme e insuspeita do ministro Marco Aurélio Mello (Supremo Tribunal Federal) recolocou as coisas no seu devido lugar – para desespero dos arautos da mídia monopolista e da “oposição”. Sobre a questão de ser ou não golpe, disse o ministro: “Acertada a premissa [isto é, se não houver crime de responsabilidade], ela tem toda razão. Se não houver fato jurídico que respalde o processo de impedimento, esse processo não se enquadra em figurino legal e transparece como um golpe”.
Minoria Expressiva
Não se pode acusar, enfim, a Folha de falta de criatividade ou inovação no discurso. O editorialista conseguiu inventar um neologismo político: a “minoria expressiva”. Para não reconhecer a representatividade da mobilização, não em defesa do governo Dilma, mas por apreço à democracia e ao Estado Democrático de Direito, o diário dos Frias escreveu: “Mesmo desmoralizado, o PT tem respaldo de uma minoria expressiva; o impeachment tenderá a deixar um rastro de ressentimento”.
Quando centenas de juristas, artistas, pesquisadores, intelectuais de vários matizes assinam documento condenando o golpe fica difícil desqualificar e descaracterizar que há setores expressivos, capazes de produzir sob intenso fogo da mídia, uma mobilização representativa – basta analisar, com honestidade intelectual, os atos em Brasília, S. Paulo (na Sé) e no Rio de Janeiro, no dia 31 de março.
Para o atual Vice-presidente, Michel Temer, a editorialista reservou uma linha: “A mesma consciência deveria ter Michel Temer (PMDB), que tampouco dispõe de suficiente apoio na sociedade”. A Folha recomenda que o vice de Dilma também renuncie, para permitir novas eleições presidenciais, em 90 dias.
É, no entanto, quando lá pelo penúltimo parágrafo, o editorialista lembra que existe o presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha (PMDB), que é réu no Supremo Tribunal Federal, acusado de crime de corrupção – cujas provas robustas já são de conhecimento público (contas bancárias na Suíça dele e familiares).
Observe o/a leitor/a o primor do envergonhado texto da Folha: “Imprescindível, antes, que a Câmara dos Deputados ou o Supremo Tribunal Federal afaste de vez a nefasta figura de Eduardo Cunha –o próximo na linha de sucessão–, réu naquela corte e que jamais poderia dirigir o Brasil nesse intervalo”.
Em última análise, a Folha termina seu libelo pró-renúncia da presidente fazendo um patético apelo: “Dilma Rousseff deve renunciar já, para poupar o país do trauma do impeachment”.
A resposta da Presidente Dilma foi publicada, no decorrer do domingo (03/04), em seu perfil no Facebook: “Setores da sociedade favoráveis à saída de Dilma, antes apoiadores do impeachment, agora pedem sua renúncia. Evitam, assim, o constrangimento de respaldar uma ação ‘indevida, ilegal e criminosa’. Ao editorial da Folha de S. Paulo publicado neste domingo (03/04), fica a resposta da presidenta: jamais renunciarei”.
O jornalista Paulo Nogueira (editor do blog Diário do Centro do Mundo, DCM), assim resumiu o posicionamento lúcido do ministro do STF: “E quando as esperanças numa Justiça menos brutalmente politizada começavam a se esvair eis que surge Marco Aurélio Mello, insuspeito de petismo, lulopetismo ou qualquer daquelas categorias que a Globo tenta demonizar na sua louca cavalgada de tentar provar o impossível: que o golpe não é golpe. Mello se ergueu nas sombras, com a coragem que vem faltando a tantos colegas seus na Suprema Corte, e lacrou: impedimento sem fato jurídico transparece a golpe. Acabou, aí, a discussão”.
No xadrez político altamente sofisticado é impossível prever os lances para além de uma semana. Espera-se, que neste começo de abril, o Supremo decida sobre a posse de Lula e alguém peça a prisão de Cunha. Caso isso se confirme é provável que o golpe em curso realmente sofra um revés definitivo. Talvez a coisa mais espetacular, do ponto de vista do interesse público, seria a imprensa “renunciar” a esse tipo de papel antidemocrático e lesa-pátria, mas daí já é esperar demais…
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Professor da UFSC e pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e do objETHOS