Sylvia Debossan Moretzsohn*
O espetáculo estava armado de maneira tão perfeita que seus organizadores já se sentiam à vontade para antecipar a comemoração. “É um dia histórico”, proclamou Eliane Catanhêde em sua coluna no Estado de S.Paulo, publicada pouco antes das dez da manhã daquela sexta-feira, 4 de março, quando o ex-presidente Lula, seu filho mais velho e alguns de seus colaboradores mais próximos foram retirados de casa para, sob condução coercitiva, prestar depoimento no inquérito da Operação Lava Jato. “É o fim do projeto do PT, o fim de uma era”, saudou a jornalista. Ainda no início da madrugada, o editor-chefe da revista Época, Diego Escosteguy, nem se preocupava em disfarçar a informação privilegiada que recebera: pelo twitter, alimentava as expectativas para o amanhecer que teria “tudo para ser especial, cheio de paz e amor” e tripudiava dos que, encurralados, estariam com seu destino selado.
Entretanto, já pela manhã alguma coisa começou a fugir do script. A notícia de que o ex-presidente estava depondo no posto da Polícia Federal no aeroporto de Congonhas gerou um tumulto que confrontou partidários e opositores do PT. O jogo virou quando, depois de liberado, Lula dirigiu-se à sede de seu partido e abriu o verbo, num discurso de quase meia hora que misturou indignação e ironia e foi transmitido ao vivo pela televisão. Como observou Janio de Freitas em sua coluna de 6 de março, reviveu “o extraordinário mitingueiro” e “deixou pasmos os que esperavam vê-lo demolido”. Abusou da autoironia quando ridicularizou a preocupação dos investigadores sobre seu consumo de vinho, com a história do decanter que virou vaso de flor. Não deixou escapar a oportunidade de falar – ainda mais que sabia estar ao vivo na Globo – da famosa mansão que não é nem nunca foi da família Marinho em Paraty, denunciada por blogs e publicações de esquerda da internet, mas ausente do noticiário da grande imprensa: “eu uso a [chácara] do amigo porque os inimigos não me oferecem. Bem que a Globo poderia me oferecer o triplex de Paraty… quem tem casa em Nova Iorque, em Paris, nunca me ofereceu, se me oferecesse eu ia…”. Para quem o considerava morto, provou o contrário: “Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça. Bateram no rabo e a jararaca está viva, como sempre esteve”.
Assim, o juiz que não escondia seu desejo de pegar o “nine” – o “nove dedos”, como, debochadamente, constantemente se refere ao ex-presidente – acabaria oferecendo-lhe um inesperado, precioso e gratuito palanque. Como tantos comentaram na internet, Lula começou o dia quase presidiário e terminou quase reeleito.
“Há meses se dizia: um erro na Lava Jato transformaria Lula em vítima. E há meses petistas diziam que isso fatalmente ocorreria”, assinalou Natuza Nery numa de suas primeiras notas na edição do dia seguinte na coluna Painel, da Folha de S.Paulo.
Jornalismo decadente
Os jornalistas e comentaristas pareciam atordoados. Tentavam reduzir o estrago, dizendo que Lula “falou para convertidos”, que estava com “síndrome de perseguição”, que havia “politizado” a ação da PF – isso, incrivelmente, foi dito a sério – e que “não deu explicações” sobre as suspeitas que pesavam contra ele.
A esta imprensa não apenas lhe falta humor: o inconformismo com o que foge ao previsto é a demonstração mais cabal da decadência desse jornalismo que se acostumou com a facilidade de “vazamentos” e abdicou do trabalho de apuração. Sonha que as informações lhe caiam no colo. Sonha com “personagens” dóceis, que correspondam ao que se espera deles. Seria mesmo o melhor dos mundos: suspeitos dos mais diversos delitos de repente utilizariam as câmeras para se explicar. Seria mais fácil, rápido e econômico: poderíamos dispensar advogados, promotores, juízes, porque a verdade apareceria ali, cristalina e sem esforço, na tela da TV.
Esses mesmos jornalistas contrariados alertavam para o risco de um conflito nas ruas, embora eles próprios tenham enfatizado os panelaços e venham apontando a passeata pró-impeachment do próximo dia 13 de março – essa data simbólica na história brasileira – como uma espécie de prova de fogo para a sobrevivência do governo Dilma. Era como se as manifestações pela derrubada da presidente fossem legítimas e as reações a elas, essas sim, configurassem uma violência. Mais ou menos como no discurso recorrente que acusa Lula e o PT de dividirem o país entre “nós” e “eles”, como se Lula e o PT tivessem inventado a luta de classes.
Parece clara, agora, a aposta num confronto no dia 13, como forma de demonstrar que o governo é incapaz de manter a ordem: é o que sugerem os artigos de Ricardo Noblat e Merval Pereira no Globo– respectivamente nos dias 5 e 6 de março –, e o que menos importa é se informam corretamente sobre a movimentação dos militares: é que lançam essa hipótese, o que basta para aumentar o clima de especulação.
Uma rara medida do nível de exaltação, à direita, foi a atitude das pessoas que gritaram, buzinaram e aplaudiram a abertura do Jornal Nacional da noite de 4 de março. Lembrou uma cena de Rede de intrigas, na qual o âncora enlouquecido exorta os espectadores a ir para a janela e berrar “eu estou muito bravo e não vou mais suportar isso!”. E o público, no filme, atende ao apelo.
A arbitrariedade e o que faltou explicar
O mote que afinou o discurso entre mídia e operadores da Lava Jato para capturar Lula foi o de que nenhum cidadão poderia se considerar acima da lei. É um velho recurso retórico, esse de atribuir a alguém uma afirmação ou ação condenável, para então anunciar o combate a ela. Míriam Leitão, colunista e comentarista nos vários veículos do Grupo Globo, repetiu essa ideia em seu twitter, mas recebeu uma contestação à altura:
Ao mesmo tempo, advogados e juristas começaram a acusar de ilegal e inconstitucional o uso da condução coercitiva naquelas circunstâncias. Entre os vários críticos estava o ministro do STF Marco Aurélio Mello, que estranhou: “Condução coercitiva? O que é isso? Eu não compreendi. Só se conduz coercitivamente, ou, como se dizia antigamente, debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado”. Em seguida, demonstrou que o problema afetava a todos: “Se quiserem te ouvir, vão fazer a mesma coisa? Conosco e com qualquer cidadão?”. Wadih Damous, ex-presidente da OAB-RJ e deputado federal pelo PT, falou em “sequestro” e em “ação orquestrada” visando a um “golpe de Estado”. José Gregori, ministro da Justiça e secretário de Direitos Humanos nos governos de Fernando Henrique Cardoso, também contestou a ação e concluiu: “na realidade o que parece é que esse juiz (Sergio Moro) queria era prender o Lula. Não teve a ousadia de fazê-lo e saiu pela tangente”.
De fato, se nossa imprensa não estivesse tão comprometida com o sucesso da operação policial, deveria ter desconfiado do fato de Lula ter sido conduzido a um aeroporto, e não a algum lugar mais reservado, como a própria sede da PF em São Paulo. “Tudo leva a crer que a ideia era embarcar o prisioneiro e algo fez parar no meio a coisa”, comentou o professor Nilson Lage em seu Facebook. “Se a imprensa não fosse tão passiva, perguntaria até o desespero. No caso, passa batido”. O jornalista Fernando Brito também indagou o que teria feito “parar o sequestro de Lula para Curitiba”: “Ou foi uma manobra para fazer espalhafato ou algo que saiu errado no meio do caminho”.
Houve quem sugerisse a possibilidade de ter sido um teste para verificar se haveria reação popular: em caso negativo, estaria aberto o caminho para uma futura prisão. Mas as informações de que havia grande concentração de pessoas na frente do prédio da PF em Curitiba, inclusive com a presença do deputado líder da extrema-direita Jair Bolsonaro, reforça a hipótese de que a intenção era mesmo conduzir o ex-presidente, preso, para lá.
Moralismo, seletividade, autoritarismo
A repercussão negativa da ação levou o juiz Sérgio Moro a divulgar nota tentando justificar a condução coercitiva como providência para garantir a segurança do ex-presidente, considerando a possibilidade de manifestações contra ele. O ministro Marco Aurélio ironizou: “Será que ele [Lula] queria essa proteção? Eu acredito que na verdade esse argumento foi dado para justificar um ato de força”.
Em artigo na Folha de S.Paulo, no qual acusava o caráter político e ilegal da ação, o advogado Pedro Estevam Serrano lembrou que “existem formas, na pratica judiciária, de se ouvir o investigado de forma não violenta e discreta, comuns de serem utilizadas em casos rumorosos. Basta combinar com os advogados do réu o local e hora e manter-se a oitiva sem noticiar à imprensa. O próprio Lula já depôs dessa forma junto à Polícia Federal”. O jornalista Paulo Moreira Leite assinalou a distinção de tratamento dispensado ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ouvido “na tranquilidade de sua casa”, em janeiro de 2005, sobre o “dossiê Cayman”, relativo à suspeita do uso de contas clandestinas no exterior para depósito de recursos oriundos de caixa 2 e corrupção. Já o jornalista Marcelo Auler recordou os constrangimentos sofridos pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek logo após o golpe militar de 64 para demonstrar que “Moro fez com Lula o que a ditadura não fez com JK”.
A intensidade das críticas, sobretudo no meio jurídico, levou o Ministério Público Federal a publicar uma nota de esclarecimento na qual tentava diluir a importância do ocorrido, lembrando que, ao longo da Operação Lava Jato, haviam sido expedidos 117 mandados semelhantes, sem que – segundo os autores – tivessem despertado clamor. Daí, concluem que os críticos insurgiam-se “não contra o instituto da condução coercitiva em si, mas sim pela condução coercitiva de um ex-presidente da República”. Os procuradores parecem não ter percebido uma evidência: é claro que a repercussão de uma violência cometida contra uma figura pública de tal relevância é inevitavelmente muito maior e tem o poder de alertar aqueles que até então estavam em silêncio para a necessidade de deter o avanço do arbítrio.
Ao mesmo tempo, não é bem verdade que os demais casos tenham passado em branco. Vários foram os protestos, entretanto desconsiderados ou não noticiados, em ocasiões anteriores. Ex-juiz e ex-desembargador, o professor Geraldo Prado apontou a violação sistemática da Constituição no âmbito da Lava Jato, orientada pelo que chamou de “lacerdismo jurídico”, uma espécie de “moralismo tupiniquim” seletivo que “constitui a expressão pública do autoritarismo”:
“O ‘moralismo’ sempre foi a arma de reserva do arsenal conservador das elites brasileiras. Nunca foi usado para denunciar a escravidão, a exploração das empregadas domésticas, o exílio interno a que estão condenadas as pessoas que moram em favelas sem água e esgoto, a vergonha do salário mínimo pré-2003, o ‘branqueamento’ das nossas virtudes e o ‘enegrecimento’ de nossos defeitos, obra cara aos ‘intelectuais’ que se sentem no direito de serem os porta-vozes da elite que pretende colonizar o seu próprio povo. Alguns encontram cadeira na Academia Brasileira de Letras”.
Em sua página no Facebook, a professora de direito penal Luciana Boiteux também criticou os procuradores e organizações de classe que defendem os métodos utilizados e associam as garantias e direitos individuais a um privilégio, como se, com elas, o indivíduo ficasse acima da lei. “Esse é o perigo e por isso o sistema constitucional formalmente garantista da Constituição de 88 está em risco: ele nunca valeu mesmo para os pobres, apenas para os ricos e classe media alta, mas era reconhecido como vigente em tese. Agora, nem isso”. A luta pela aplicação da letra da lei aos mais vulneráveis é, então, abandonada, e a ênfase recai no empenho em se relativizar as garantias para “o ‘andar de cima’ petista”. Isso, diz Luciana, tem consequências abrangentes para os que historicamente estiveram à margem do direito, e é por isso que a defesa das garantias é tão urgente. “Quando passar essa onda política punitiva antipetista, os novos ocupantes do poder voltarão a ser protegidos e imunizados pelo sistema político e judicial e restará uma jurisprudência e uma prática penal ainda mais autoritária do que nunca”.
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Professora de jornalismo da UFF e colaboradora do objETHOS