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Sobre provas, convicções, manipulações e sujeitos coletivos

Sylvia Debossan Moretzsohn
Professora de jornalismo da UFF e pesquisadora do objETHOS

O show da força-tarefa da Operação Lava Jato na acusação do ex-presidente Lula como o grande capo da “propinocracia” não gerou apenas um meme de grande impacto. Produziu também uma enorme ironia: a insinuação de manipulação de informações, apontada justamente por quem mais entende do riscado – as grandes empresas de comunicação.

A frase “não temos prova, mas temos convicção” começou a circular pelas redes logo depois que o procurador Roberson Pozzobon alertou para a ausência de “provas cabais” de que Lula fosse de fato o proprietário do tal triplex do Guarujá. Pouco antes, em sua longa explanação, o líder da força-tarefa, Deltan Dallagnol, havia falado em “convicção”, mas prometera provas. A associação das duas falas produziu a frase que, junto com o canhestro power point de bolinhas azuis exibido na apresentação do MPF – e que também foi objeto de inúmeras paródias –, provocou a onda de reações que variou entre o escárnio e o protesto indignado.

Deltan Dallagnol apresentando o power point com as bolinhas azuis que provam a corrupção de Lula
Deltan Dallagnol apresentando o power point com as bolinhas azuis que provam a corrupção de Lula

No dia seguinte, entretanto, o G1 contestava a autenticidade da frase, no que foi seguido por outros portais e pelos sites dos principais jornais, como o da Folha de S.Paulo. O Buzzfeed publicou matéria que acusava um blog – o Conexão Jornalismo – de ter “inventado” a frase. Osite boatos.org a classificou como “falsa”. Dallagnol se apressou em anunciar nas redes sociais que a frase “foi inventada contra a Lava Jato, num contexto de guerra de comunicação”.

A polêmica poderia apontar pura e simplesmente no sentido da desqualificação da crítica ao MPF, acusando a deturpação como arma ideológica. Foi esse o enfoque, aliás, do editor de política do Globo, em seu artigo sobre o tema: embora condenasse os procuradores que “exageram nas tintas”, classificou a repercussão da “frase que nunca foi dita” como “desonestidade intelectual a serviço de uma causa”:

“Não há aí [na fala de Pozzobon] confissão de falta de provas. Nunca houve a suspeita de que Lula seja o proprietário, no papel, do triplex. Mas sim de que o ex-presidente seja o dono oculto do apartamento. Há fartas evidências nesse sentido, como as conversas grampeadas entre engenheiros da obra e a presença de Lula e Marisa no imóvel, comprovada por fotos”.

Poderia ter aproveitado para indagar como se explica o chefe desse espetacular esquema de corrupção se contentar com tão pouco – uma propina disfarçada de reforma de apartamento e guarda de bens, no valor de R$ 3,7 milhões, quando seus comandados se refestelam com cifras de três algarismos e têm contas e imóveis luxuosos no exterior. Seria a expressão de sua “alma de pobre”? A desproporção entre o tamanho da acusação e o montante da propina exigiria a pergunta, caso tivéssemos imprensa digna desse nome na coletiva.

Uma síntese do espetáculo

Seja como for, a “frase que nunca foi dita” permite uma discussão que ultrapassa de longe o que seria uma rasteira e banal artimanha de manipulação discursiva. Pois, colocada entre aspas e atribuída a um sujeito individual, a frase de fato não existiu. Vista, porém, no contexto da denúncia do MPF – ou seja, como expressão do discurso desse sujeito coletivo, que é exatamente do que se trata –, funciona como um perfeito resumo do que aconteceu. A propósito, o Conexãovoltou ao tema, reconhecendo que se tratava de uma composição da fala de dois procuradores, mas reiterando o sentido que importava: “o conjunto da explanação dos procuradores revela que eles têm convicção da culpabilidade de Lula, mas não provas cabais” disso.

Vale a pena ler a transcrição das falas e destacar os trechos sobre “convicções” e “provas” – aquelas que, infelizmente, não temos – e sobre o valor “milionário” da propina que teria beneficiado Lula. Na altura de 1h01:42 do vídeo, Dallagnol afirma:

“Tendo agora completado o quebra-cabeças que aponta para um centro [aqui, talvez, a explicação para o power point de bolinhas azuis cheias de setinhas], que aponta para o fato de que Lula era o grande comandante do esquema lava jato e do esquema que nós denominamos de propinocracia (…) PROVAS são pedaços da realidade que geram convicção sobre um determinado fato ou hipótese. Todas essas informações e todas essas PROVAS analisadas, como num quebra-cabeças, permitem formar seguramente a figura de Lula no comando do esquema criminoso identificado na Lava Jato. Todas essas PROVAS nos levam a crer, para além de qualquer dúvida razoável, que Lula era o maestro dessa grande orquestra concatenada para saquear os cofres da Petrobras e de outros órgãos públicos. Ele era o general que estava no comando da imensa engrenagem desse esquema que chamamos de propinocracia, o governo por meio da propina.

Visto que Lula estava no centro, o que nos demandou a formação um quebra-cabeças para fins PROBATÓRIOS apontando a autoria e o comando desse esquema por Luis Inácio Lula da Silva, a questão agora é: qual é a parte desse esquema gigantesco que é denunciada hoje? A parte do esquema denunciada hoje tem três focos: o primeiro dos focos é a corrupção em três contratos firmados pela OAS com a Petrobras. O segundo foco é a lavagem de parte MILIONÁRIA desse valor em benefício direto do ex-presidente Lula por meio do triplex de Guarujá. Por fim, a lavagem de parte MILIONÁRIA desse valor em benefício do ex-presidente Lula, por meio do pagamento, pela OAS, da armazenagem de bens pessoais de Lula, mediante um contrato falso. A isso se adstringe a a acusação criminal formulada hoje.

Em relação à corrupção envolvendo três contratos da empresa OAS, o que se COMPROVOU é o mesmo já COMPROVADO em acusações anteriores: a OAS, mediante cartelização, ganhou contrato e pagou propinas, as quais foram direcionadas a funcionários de alto escalão da Petrobras, a políticos a partidos políticos, e (…) e agora vem a novidade, também, e particularmente, a Lula, como SERÁ EXPOSTO E COMPROVADO NA PARTE ATINENTE À LAVAGEM DE DINHEIRO”.

A seguir, por volta de 1h09, Pozzobon esclarece:

“Precisamos dizer desde já que, em se tratando de lavagem de dinheiro, ou seja, em se tratando de uma tentativa de manter as aparências de licitude, não teremos aqui provas cabais de que Lula é efetivo proprietário, no papel, do apartamento, pois justamente o fato de ele não figurar como proprietário do triplex, da cobertura em Guarujá, é uma forma de ocultação, de dissimulação da verdadeira propriedade”.

Como comentou o professor Bruno Reis, vice-diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, “para um procurador se permitir esse gênero de circularidades, o proselitismo político ostensivo e as generalidades presentes na acusação, é porque sabe que o juiz está com ele. Aí, basta jogar pra plateia”.

“Jogar para a plateia” parece mesmo ter sido o objetivo do show do MPF, o que causa extrema preocupação pela adoção da lógica do espetáculo e pela substituição do direito pela moral, como disseram dois juristas ouvidos pelo portal UOL. Por isso, talvez, os indigentes slides das bolinhas azuis: tamanho primarismo só se explicaria como uma forma de comunicação elementar, dirigida para um público incapaz de refletir, que precisa de tudo bem desenhadinho para aceitar aquelas “revelações”. Justamente o público que vai procurar em jornais, sites e redes de TV a confirmação de suas… convicções.

Para esses, toda a argumentação aqui é perfeitamente inútil.

Para os demais, é importante ressaltar que essa formulação sobre as convicções sem provas não representa novidade: já figurava na “teoria do domínio do fato” consagrada no julgamento do Mensalão e no argumento da ministra Rosa Weber de que é possível condenar “porque a literatura permite”.

Caso fosse uma fraude, a “frase que nunca foi dita” se tornaria mais um exemplo daquele emblema gravado por John Ford no arremate deO homem que matou o facínora: “quando a lenda se torna verdade, publique-se a lenda”. Pelo contrário, como síntese do sentido geral daquele show, vai entrar para a história como o “estupra, mas não mata” ou o mais recente “podemos tirar, se achar melhor” – não por acaso, referência a uma denúncia sobre o esquema de corrupção na Petrobras anterior aos governos petistas, algo que, para o juiz da Operação Lava Jato, infelizmente “não vem ao caso”.

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