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Quem tem medo do bom jornalismo?

Dairan Paul
Mestrando em Jornalismo no POSJOR e pesquisador do objETHOS

A cobertura de uma ocupação estudantil na Secretaria da Fazenda de Porto Alegre terminou em mais um ataque à liberdade de imprensa no Brasil. Na última quarta-feira (15), o repórter Matheus Chaparini, do Jornal Já, foi deslocado até o local para apurar um protesto de mais de 40 estudantes. O grupo manifestava-se contra o acordo do governo gaúcho com a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), que resultaria na desocupação das escolas estaduais. Sem muito sucesso, os estudantes foram expulsos pela Brigada Militar à base da força e com o uso de sprays de pimenta. Chaparini, o único jornalista presente no local, documentou o que viu. Ao deixar o prédio, estava preso – ele, os estudantes, e o cineasta Kevin Darc, que captava imagens para um documentário.

O relato do jornalista esclarece minuciosamente as catorze horas em que ficou detido. Nesse meio tempo, passou pela Delegacia da Criança e do Menor, pela 3ª Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento e, por fim, no Presídio Central, onde permaneceu em uma cela. Chaparini foi liberado junto com Darc e os demais estudantes na madrugada de quinta-feira. O repórter está em liberdade provisória e responde a um processo por corrupção de menores, dano qualificado ao patrimônio público, associação criminosa e esbulho possessório.

Qual foi o crime de Chaparini? Em nota, a Secretaria de Segurança Pública responde que a prisão do jornalista na manhã de quarta-feira ocorreu porque “durante todo o tempo, ele estava dentro do prédio invadido, agindo como integrante do grupo militante que praticou a invasão”. O texto ainda infere que o repórter do Jornal Já apenas se identificou como jornalista “quando já estava consumada a prisão”.

O repórter Matheus Chaparini foi preso enquanto exercia a profissão. Créditos: Ramiro Furquim/Jornal Já

Essa versão já foi contestada por Chaparini. Antes de entrar no prédio, ele participou de uma entrevista coletiva com o tenente-coronel da Brigada Militar – e, portanto, identificou-se como jornalista ao conversar com a fonte.

Dentro da Secretaria, o repórter filma cenas de agressão dos policiais, que arrastam os manifestantes e utilizam spray de pimenta (assista aqui o vídeo). Chaparini questiona o capitão que comanda a ação se “no caso das meninas, não deveria ter uma brigadiana mulher” para abordá-las. Ao não receber resposta, ele se identifica mais uma vez: “eu sou jornalista, não sou policial”. Em um segundo momento, o repórter tenta deixar o prédio e informa novamente que é da imprensa. O capitão pede para o jornalista esperar. “Para mim, tu está junto [com os manifestantes]”, diz. “Ficou o tempo inteiro aqui. Lá embaixo tu se identifica”.

Há provas evidentes de que Chaparini deixou claro ser jornalista – além de falar aos próprios policiais, ele também estava com dois crachás de identificação. Estamos tratando, portanto, de uma prisão que ocorre em pleno exercício da atividade jornalística. No Rio Grande do Sul, o último caso desse tipo aconteceu em 1987, quando o repórter Alfredo Daudt, do Jornal do Comércio, foi preso em uma manifestação de professores e servidores públicos. Mais recentemente, em dezembro de 2015, uma ação prendeu duas jornalistas do coletivo Maruim e um repórter fotográfico do Diário Catarinense durante a cobertura de uma reintegração de posse, em Florianópolis. Semelhante à Brigada Militar, a PM de Santa Catarina justificou que as profissionais foram identificadas como “participantes do movimento”. São situações como essas que levam o Brasil a ocupar o 104º lugar no ranking mundial de liberdade de imprensa, organizado pela ONG Repórteres Sem Fronteiras. Violência, concentração dos meios e corrupção contribuem para a baixa posição do país.

Um diálogo entre jornalismo e ativismo

A despeito da falta de segurança para jornalistas, há outro ponto relevante no caso de Matheus Chaparini: as reações que sua prisão provocou. Diversos colegas de profissão manifestaram solidariedade, assim como o sindicato do estado e a Associação Riograndense de Imprensa. Como era de se esperar, o assunto também virou notícia e figurou em jornais e rádios. Duas abordagens, no entanto, se destacam.

A primeira delas é uma entrevista veiculada no programa Balanço Geral, da Rede Record gaúcha. Uma das perguntas da repórter cita fotos de redes sociais particulares de Chaparini em que ele participa de protestos, e questiona se isso teria gerado uma confusão a respeito de quem estava lá – o Matheus jornalista ou o Matheus manifestante.

A segunda reação gerou mais polêmica. Em sua conta no Twitter, o repórter Felipe Daroi, da Rádio Gaúcha (RBS), escreveu uma série de postagens sobre o caso: (1) Na invasão de hoje foi preso um jovem que se diz “jornalista”. Na página dele, várias fotos dele participando de protestos. Jornalista?; (2) Jornalista não é manifestante. Deveriam avisar na faculdade. Jornalista que participa de manifestações será isento ao escrever sobre tal?; (3) “Mídia ninja” contaminou as “redações”!! Coisa linda!!! Haha; (4) Aliás, nesses protestos, o que tem de “jornalista” não é mole. É uma maquininha na mão e a frase: “sou jornalista, sou jornalista…”; (5) Jornalista isento não participa de protestos. Seja protesto contra/a favor Dilma, Temer, escolas, cachorros, gatos, bicicletas, deus, etc.; (6) Ninguém me respondeu isso: Jornalista não é manifestante. Jornalista que participa de manifestações será isento ao escrever sobre tal?.

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O jornalista Igor Natusch critica a prisão de Chaparini

O argumento de Daroi é semelhante à pergunta anterior feita pela repórter da Rede Record: Chaparini participa de protestos, logo, não é isento. Parece-me pertinente analisarmos esse raciocínio, não porque ele está imbuído de uma óbvia aura de imparcialidade – seja ela meramente ingênua ou, talvez, cínica -, mas porque há um notório repúdio a jornalistas que participam de manifestações e ativismos.

Em primeiro lugar, todo discurso, seja ele em forma de texto, foto ou vídeo, é mediado por alguém. Essa mediação, por sua vez, também é política – ela está inserida em um contexto social, dentro de um jogo de forças, e carrega marcas de exclusão/inclusão, do que é certo ou errado. Concluirmos que o jornalismo jamais foi imparcial (pois ele é um discurso que seleciona, recorta e interpreta fenômenos), por outro lado, parece insuficiente. Podemos cair em um relativismo extremo: afinal, se tudo no jornalismo é parcial e cada veículo publica a sua versão dos fatos, não há nada a ser contestado, visto que ela sempre será verdadeira dentro de um universo particular.

Não é assim que as coisas funcionam. A partir de qualquer fenômeno, o jornalista até pode (re)construir algo que tenha um valor de verdade para determinado público – mas, a meu ver, esse resultado só poderá ser chamado de informação jornalística se seguir um padrão mínimo de valores éticos. Esse raciocínio é semelhante para a aproximação que faço entre jornalismo e ativismo.

No senso comum, “ativismo” parece ser um termo frequentemente relegado a pautas progressistas e grupos de esquerda – vide ativismo ambiental, ativismo feminista, ativismo LGBT. O jornalismo, por sua vez, não raramente é considerado como uma forma de ativismo, em maior ou menor grau. Há quem fale em “jornalismo de causas” (advocacy journalism), por exemplo. Mas se há teóricos que defendem esse movimento, há aqueles que separam totalmente a profissão do ativismo – como é o caso do repórter Felipe Daroi. Não deixa de ser irônico que muitos dos que utilizam o termo “ativista” para desqualificar pequenos grupos de mídia sejam, eles próprios, trabalhadores de jornais ou revistas que ora se aproximam muito mais do ativismo do que do jornalismo – como, por exemplo, a perseguição insistente a determinadas figuras políticas atropelando todo e qualquer valor ético da profissão.

Desse modo, já podemos concluir que práticas ativistas não são restritas somente a pequenos jornais alinhados à esquerda, como acusaria o senso comum. No entanto, se afirmamos anteriormente que não há imparcialidade no discurso jornalístico, uma aproximação entre ativismo e jornalismo é desejável? Estaríamos mais perto de uma prática jornalística “honesta” se ela defender abertamente uma causa?

Primeiramente, depende de que causa estamos falando. Penso que o jornalismo pode, sim, se aproximar do ativismo. Por ter uma estreita relação com a democracia, me parece pertinente considerar que o jornalista é um ativista – desde que seja um ativista engajado em promover os direitos humanos. É claro que este termo, direitos humanos, é ao mesmo tempo amplo e vago, rendendo discussões vastas. A ideia geral, no entanto, é reconhecer o compromisso ético que jornalistas possuem em aderir a determinados valores, especialmente calcados na noção de interesse público e defesa da democracia (novamente, outros dois termos relativamente instáveis). Esses princípios constituem as regras deontológicas da profissão. São reconhecidos e esperados pelo leitor através de um contrato social; quando não atendidos, acarretam na perda de credibilidade do jornalismo e, consequentemente, enfraquecem a sua legitimidade.

Essa é a aproximação desejável entre jornalismo e ativismo. Qualquer outra que atropele estes valores é apenas uma defesa de causas particulares.

De outro lado, o jornalismo se distancia do ativismo por ter a dúvida como ponto de partida para o processo de apuração. Não há, a priori, nenhuma verdade convicta para o jornalista: ele deve estar aberto à contradição. Voltar ao “jornalismo de opinião”, puramente subjetivo, assumidamente parcial, não é sinônimo de algo mais honesto ou próximo da verdade. Essa crítica já era esboçada em fins da década de 1980 pelo teórico marxista Adelmo Genro Filho, para quem a fase panfletária do jornalismo era a menos representativa da essência da profissão por não abarcar o fenômeno singular, característico da fase moderna e informativa. Essa postura de desconfiança, portanto, é uma espécie de distanciamento que em nada tem a ver com negar o componente subjetivo do jornalista. Ao invés disso, ela reforça o comprometimento com regras deontológicas que legitimam a profissão.

No caso de Chaparini, o que se pode concluir é que o jornalista estava fazendo tudo, menos “jornalismo” entre aspas. Estar presente no olho do furacão, como foi o seu caso junto com os estudantes, é mérito, e não o contrário. Chaparini incomodou. Exerceu bom jornalismo. Ironicamente, o repórter que desdenhou de sua apuração excessivamente “participativa” pode ser, ele próprio, também considerado um ativista: não no sentido de promover direitos humanos – incluindo aí o direito à informação -, mas no de se fechar em uma causa, negar o princípio da contradição e restringir-se às fontes oficiais que tendem a reiterar um discurso único.

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