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Spotlight, vazamentos seletivos e os dentes do cavalo

Sylvia Debossan Moretzsohn

A equipe de repórteres está empolgada com a comprovação de uma série de casos em que padres abusavam sexualmente de crianças e adolescentes. Quer publicar logo o que tem em mãos. O diretor de redação contém os ânimos: é preciso investigar mais. Não quer pegar apenas indivíduos do – no caso, literalmente – baixo clero, não quer denúncias que possam ser tratadas como acontecimentos isolados. Quer atacar “o sistema”.

A cena é uma das mais significativas de Spotlight – segredos revelados, filme indicado ao Oscar que estreou no Brasil no dia 7 de janeiro e trata do empenho de um grupo de repórteres especiais doBoston Globe – o Spotlight – na apuração do maior escândalo da Igreja católica do século XX: a sucessão de casos de pedofilia, sistematicamente abafados, e que, uma vez trazidos à luz, numa série de reportagens publicada em 2002, resultaram no afastamento do arcebispo de Boston – embora não em sua punição, dada a solução de compromisso encontrada à época – e na proliferação de denúncias de ocorrências semelhantes outras cidades dos EUA e do mundo. O “sistema” havia sido exposto, de maneira contundente e incontestável.

Tal como o clássico Todos os homens do presidente, de 1976 – embora com diferenças significativas, como aponta o professor Gary Wills neste artigo na New York Review of Books –, o filme é um elogio do jornalismo, mas não foge das contradições próprias do exercício profissional. Mostra, no caso, a incapacidade de repórteres e editores de enxergar o alcance daquela história, pela sua própria condição de pessoas “nascidas e criadas” na cidade: afinal, as denúncias já tinham sido feitas anos antes, e mereceram apenas registros nas páginas do jornal. Foi preciso vir alguém de fora – o novo diretor de redação, um judeu sem qualquer vínculo com a comunidade local – para que a investigação ganhasse fôlego e alcançasse tamanho impacto. Um personagem que ajuda a demarcar a necessidade de independência da imprensa, especialmente na cena em que, numa conversa privada, ele recusa a parceria oferecida pelo arcebispo, dizendo que em jornalismo é melhor caminhar sozinho.

Hoje, como ontem

Essa recuperação da fé no jornalismo, ainda mais nesses tempos de tamanha incerteza para a profissão, vem causando entre jornalistas brasileiros, sobretudo os mais velhos, um misto de orgulho, decepção e nostalgia, como indica o texto que o repórter Marcelo Auler publicou em seu blog, ao recordar o início da investigação do caso Rubens Paiva, ainda no fim dos anos 1970. Inúmeras outras reportagens, antigas e recentes, poderiam ser citadas. Mas o filme, e em particular aquelas cenas sobre a necessidade de “pegar o sistema” e “caminhar sozinho”, deveriam servir para confrontar a prática sistemática de certo autoproclamado “jornalismo investigativo” no Brasil, que não passa de acolhimento automático e acrítico de denúncias bombásticas. E não, não tem nada a ver com a superficialidade ou a urgência dos tempos da internet.

“…ao publicar notícias que envolvem políticos e empreiteiras, a imprensa está caindo num ‘denuncismo’ frenético. Informações pouco confiáveis acabam indo parar nos jornais e telejornais por conta desse comportamento irresponsável, que parece querer recuperar o tempo perdido. Denúncias contra quem quer que seja, mesmo que feitas por um (…) corrupto confesso, (…) são apresentadas como verdade verdadeira ao público. Essa é a imprensa que o leitor gostaria de ter?
A resposta é não. Como boa parte dos veículos não tem a saudável prática de corrigir notícias distorcidas que divulgou, o público fica exposto à desinformação e os personagens deste episódio, a injustiças que nunca serão reparadas. Como o escândalo tem ramificações complicadas, o noticiário se transforma numa selva de nomes, datas e relatos sem que o leitor encontre um guia para não se perder”.

O texto poderia se referir à cobertura da Operação Lava Jato, mas não. Foi escrito em 1993 pela então ombudsman da Folha de S.Paulo, Júnia Nogueira de Sá, que tratava de algo que “todo mundo” – menos o público… – sabia: um esquema de desvio de dinheiro público coordenado pelo funcionário José Carlos Alves dos Santos. Preso sob a acusação, posteriormente comprovada, de ter assassinado a mulher como “queima de arquivo”, ele acabou denunciando a história.

Por que, então, a imprensa não cumpriu o seu papel de informar o que “todo mundo” sabia? A pergunta ficou sem resposta, mas a ombudsman desmontou, com rara contundência, a imagem que os jornalistas costumam cultivar de si próprios – e a releitura de seu artigo tem a vantagem suplementar de refrescar a memória de quem gosta de pensar que a corrupção no Brasil começou agora:

“O que foi que faltou a repórteres e seus editores? Perseverança e faro jornalístico. É muito mais fácil cobrir um caso como este ouvindo depoimentos na CPI do que juntando papéis, entrevistas, rumores e indícios para transformá-los em fatos. É muito mais fácil encontrar um José Carlos Alves dos Santos que entregue de bandeja um esquema de corrupção do que escavá-lo nos subsolos do Congresso. Assim como foi muito mais fácil ter um Pedro Collor que desse forma final a tudo o que se conversava em rodinhas de jornalistas nas redações do país inteiro.
“Só para o leitor é surpresa que o dinheiro ilícito vem sendo ‘lavado’ nas loterias com o conivência de autoridades. Só para leitor é surpresa que cidades da Bahia têm dotações suficientes para crescer 30 vezes em tamanho, mas nunca receberam o dinheiro vivo. Só para leitor é surpresa que o Orçamento da União virou, desde a reforma constitucional de 1988, um balcão de favores com recursos oficiais. Só para o leitor a lista de envolvidos nesse escândalo, políticos e empreiteiras, tem nomes novos.
“É verdade que a imprensa saiu do Collorgate melhor do que entrou, pelo menos aos olhos de seu público. Mas o episódio tem particularidades que merecem ser lembradas. Primeiro, foi preciso que Pedro Collor enxovalhasse o irmão numa entrevista à Veja para que parte da imprensa resolvesse olhar melhor o arrivista instalado no Palácio do Planalto. Depois, foi preciso que as manifestações populares se tornassem ruidosas para o que o restante dessa mesma imprensa se convencesse de que seu papel era noticiar os fatos em vez de afrontá-los, e agisse no interesse de seus leitores e telespectadores”.

Também desde os anos 1990 o idealizador do Observatório da Imprensa, Alberto Dines, condenava o “jornalismo fiteiro”, que se valia de vazamentos de escutas telefônicas ilegais, e o “moralismo seletivo” diante de determinadas denúncias. Os artigos publicados por ele e outros autores em torno desse tema, ao longo de vários anos, foram reunidos numa publicação organizada por Luiz Egypto, então editor do Observatório, que pode ser consultada aqui.

Cavalo dado

Como se vê, existe entre nós uma tradição de crítica de mídia, entretanto incapaz de alcançar boa parte do meio profissional, seja pela dificuldade de se enfrentar o espelho, seja pelos famosos interesses inconfessáveis que prevalecem no comando das grandes redações. Sem contar, claro, a imposição de um ritmo de trabalho que sufoca os repórteres, cobrados por uma urgência de que não podem nem devem dar conta – se pensarmos no tempo necessário para podermos enxergar a floresta e não, apenas, a profusão de árvores e seu emaranhado de galhos –, ainda mais nesses tempos de sucessivas demissões em massa.

Mas às vezes o senso comum profissional exagera.

Um experiente jornalista, atento e permanentemente indignado observador da mídia onde trabalhou durante décadas, estranhou artigo recente de Helena Chagas no Fato on line: ela endossava a crítica aos vazamentos seletivos da Operação Lava Jato – que “colocam como iguais quem praticou crime, quem feriu a ética e quem é inocente” – mas, ao mesmo tempo, enaltecia a “parceria entre autoridades de investigação e imprensa” que “tem contribuído para denunciar escândalos, botar gente na cadeia, expor atos de corrupção”. Lamentava apenas o risco de o remédio se tornar veneno, dependendo da dose. Pior: considerava natural a acolhida de trechos de delações premiadas, gravações de conversas, mensagens de celular ou partes de documentos oficiais, “muitas vezes sem contexto ou maiores explicações”, sob o singelo argumento de que “a cavalo dado não se olha os dentes”.

Ou seja: o cuidado elementar de todo jornalista, que é, antes de mais nada, verificar a quem interessa a informação que lhe cai no colo, confirmar sua veracidade e publicá-la – quando for o caso – em seu devido contexto, passou a ser algo perfeitamente dispensável.

E quem diz isso não é uma jornalista qualquer: é uma experiente colunista política que foi ministra-chefe da Secretaria de Comunicação da presidência da República no primeiro mandato de Dilma Rousseff. O que, subsidiariamente, há de dizer algo a respeito da competência do governo em escolher seus assessores.

“Usar a imprensa”

Helena Chagas, assim, radicalizou na reiteração do senso comum dos jornalistas em relação a seu próprio trabalho – aquilo que certa vez chamei de “jornalismo de mãos limpas”, porque “lava as mãos” diante do que publica, atribuindo toda a responsabilidade às fontes. Se algum erro grosseiro ocorrer – como foi o caso de uma denúncia envolvendo um dos filhos do ex-presidente Lula, editada em manchete pelo Globo, que comentei aqui –, basta pedir desculpas, sem que se evidencie o escândalo da divulgação de uma informação falsa quando a verdadeira seria comprovável através da consulta ao que está escrito num documento. Se algum delator muda o seu depoimento, como foi o caso recente do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, ficamos por isso mesmo, confusos nessa “selva de nomes, datas e relatos”.

(A propósito, a coluna da ombudsman da Folha de S.Paulo deste domingo, 17/1, refere-se a esse episódio para assinalar “quão movediço é o terreno pré-delação”. Seu texto é uma crítica ao noticiário recente do jornal, que escancara o nome de políticos no título e esconde as ressalvas no pé do texto. A resposta do editor de política a essas observações é significativa: “O que ele [um dos parlamentares presos, que negocia sua delação] fala, mesmo sem termos muitos detalhes, me parece relevante”. E assim, apenas porque “parece”, justifica-se uma manchete sobre o que talvez diga uma fonte na delação que supostamente fará).

Este é apenas mais um aspecto dessa saudável “parceria” entre as instituições e o jornalismo, em que o Ministério Público passa uma acusação em primeira mão, o jornal publica e então já existe motivo para se abrir ou ampliar uma investigação. Todos ficam felizes: a imprensa, porque se abastece de notícias, e os procuradores, que se enchem de casos.

É talvez por isso, porque não olhamos os dentes do cavalo nem nos preocupamos com o contexto, que tenha soado tão natural a declaração do juiz Sergio Moro sobre a necessidade de “usar a imprensa” em sua cruzada pela moralidade pública.

Rara voz à contracorrente, Janio de Freitas notou o absurdo e, com a sua habitual ironia, dedicou ao juiz um parágrafo de seu primeiro artigo do ano:

“Ao juiz Sergio Moro, os votos de que reflita sobre uma atividade que ele designa com a abominável expressão ‘usar a imprensa’. Notícias deliberadamente inverdadeiras ou imprecisas são violações da ética, tanto a pessoal como a profissional, sejam quais forem as pessoas e as profissões. Se essa prática é criticada na imprensa, não será na magistratura e no Ministério Público que se tornará legítima”.

Deveria ser óbvio, mas, num ambiente dominado pela submissão, dizer o óbvio soa como um ato de rebeldia.

*Agradeço aos jornalistas Marcos de Vasconcellos e Gustavo Kaye pelo diálogo fundamental para a elaboração deste artigo.

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Fonte: Observatório da Ética Jornalística

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